COLUNA CINEMA E PSICANÁLISE
Bruna Rosalem e Marcus Hemerly:
‘O Operário: Uma narrativa da Carne’
É tudo o que vemos ou parecemos. Mas um sonho dentro de um
sonho? (Edgar Allan Poe)
Uma figura esquelética sentada em um ambiente parcamente mobiliado, sonolento, quase cerrando os olhos diante da exaustão. Tem em suas mãos um exemplar de O Idiota, de Dostoievski. Antes de dormir, o homem subitamente levanta os olhos sobressaltado com a queda do volume a seus pés. Em verdade, Trevor Reznik (Christian Bale) não dorme há um ano, talvez, um dos fatores a explicar seu corpo magérrimo de onde irrompe ossos protuberantes e um rosto profundo, intensificado por olheiras.
O título ‘O operário’, (do diretor Brad Anderson, 2004), traduz a ocupação do personagem central da obra, que diante de sua peculiar imagem desperta desconfiança, e até mesmo desprezo de seus superiores e colegas de trabalho, a despeito da tentativa de permanecer inserido no grupo que passa boa parte do dia consertando máquinas em um galpão escurecido e cinzento.
Gradualmente, a partir de falas espaçadas e vazias de Trevor, percebemos que algo aconteceu, mesmo sem precisar quando ou o porquê, resultando na mudança de comportamento, e, principalmente, de aparência do personagem. Em determinado momento, um de seus antigos colegas chega a dizer: “O que aconteceu com você? Costumava ser legal”, sinalizando sua anterior ‘feição de sociabilidade’. Em sua atual realidade, as únicas ações não robóticas são a interação com a garota de programa Steve, que parece lhe nutrir peculiar devoção com tímida reciprocidade, e constantes visitas ao aeroporto para um café, um pedaço de torta que nunca come e uma conversa com a garçonete.
A tensão aumenta quando o estado letárgico de Trevor culmina num acidente no qual um dos operadores de máquina perde o braço. Sua exclusão, agora formal do grupo, parece incontestável e o perturba coadjuvantemente à chegada de um novo empregado que, de maneira estranha, parece perceber não só sua inquietude, mas até mesmo a motivação, ainda que não consciente, do personagem.
No decorrer do filme, pequenas dicas são semeadas, que, em sua maioria, tornam-se percebidas pelo espectador na segunda sessão, quando o quebra-cabeça e o final catártico são revelados. Além do ambiente onírico, gravado em um verão escaldante de Barcelona, simulando Los Angeles, Bale teve de emagrecer 28 kg, em um verdadeiro esforço de camaleão, considerando que um dos seus trabalhos seguintes seria ‘Batman Begins’ de Christoffer Nolan, no qual teve que ganhar considerável massa muscular. Sua dieta no período de ‘O operário’ consistiu de uma maçã e uma lata de atum por dia, durante quase três meses, criando um aspecto que produz mal-estar e ao mesmo tempo realça sua interpretação hipnótica sinalizando a deterioração do personagem.
É sabido que alterações corporais drásticas ou de maquiagem recorrentemente são recebidas com um favoritismo no âmbito da crítica e, principalmente, nas premiações. Lembremos de Nicole Kidman em ‘As Horas’, (2002), interpretando Virgínia Woolf e Charlize Theron em ‘Monster’ (2003), ambas usando próteses faciais que lhes renderam o Oscar de melhor atriz, além do recente A Baleia (2022), cujo personagem interpretado por Brendan Fraser usava uma espécie de prótese que pesava cerca de 130kg para se parecer como um obeso mórbido. No entanto, a transformação de Bale foi totalmente corporal, aliás, sua versatilidade já remonta a seus primeiros trabalhos, como no sempre lembrado ‘Império do Sol’, de Steven Spielberg, com apenas 13 anos.
Na trama que acompanhamos, Trevor parece transitar entre realidade e fantasia. Condensando elementos vividos no passado, fragmentos desconexos de memórias recentes, criadas ou ainda vivenciadas em algum lugar no tempo e espaço, o operador de máquinas perde-se a todo instante. Ora interage com seus próprios delírios, ora tenta desvendar pequenas pistas de um jogo de forca que de tempos em tempos aparece em sua geladeira. Ao longo do filme não sabemos se ele está enlouquecendo ou simplesmente sonhando. Quando conversa com alguém, ficamos em dúvida se tal pessoa existe ou se é uma alucinação resultante de uma vida nada saudável, na qual dormir é quase impossível.
Assim como Trevor busca incessantemente entender o mistério de sua própria vida, o espectador se depara, retire-se, com quase imperceptíveis sinais ao longo da narrativa. A mencionada figura misteriosa que surge na pele de um novo funcionário desperta imediato interesse de Trevor. Ele é forte, tem um carro vermelho, usa boas roupas e, detalhe, os dedos de uma das mãos estão dilacerados, assim como no acidente provocado por Trevor em seu amigo. Na realidade, somente o operário consegue ver este homem, inclusive ele insiste em afirmar que ele aparece numa foto na casa de Steve. Ao se deparar com a imagem, Trevor entra num grande conflito com a moça, achando que fosse seu ex-companheiro e estava sendo traído. Mais adiante na película, vimos que era o próprio Trevor na fotografia.
Este fato, dentre outros que vão surgindo sutilmente em recortes, vão compondo um verdadeiro quebra-cabeças. Afinal, o personagem alucina ou estaríamos presos num longo sonho fragmentado que nunca acaba? O que sabemos é que Trevor apresenta insônia e pouco se alimenta. Mas o que de fato provocou esta situação?
Sua carne sofre. Seu corpo esvaece lentamente. Algo o consome de dentro para fora. É comido vivo. Suas entranhas são tomadas como último recurso antes que Trevor possa não existir mais. Ainda há luta para manter-se vivo, seus delírios agem como defesas do Eu para evitar desintegrar-se de vez. A frase escrita em um pequeno papel na parede diz: “Quem é você?”, Trevor responde: “Eu sei quem é você!”. Neste momento colocamo-nos diante de uma regressão que transforma o rumo da história.
O operador de máquina paga com seu corpo e alma por ter assassinado uma criança. Um atropelamento sem prestar socorro culminou numa fuga de si mesmo, algo que se tornou insuportável. Trevor é um morto-vivo, um ser que circula entre remorso, dor, culpa. Ressente-se pela falta de atitude diante daquele menino estendido no chão e é consumido por isso.
O cara forte com botas de cowboy dirigindo o carro vermelho sempre foi ele. O filme deixa claro o quanto sua aparência era bem diferente do que vemos na atualidade. Trevor era vigoroso e saudável. Parecia estar de bem com a vida. Até que tudo mudou.
Mais do que retratar um homem arrependido, a obra nos aponta que sentimentos e emoções estão encarnados, ou seja, é impossível separar psiquismo de corpo. Soma (carne) e psique são um só. Na história remota, houve tentativas de separar corpo e espírito, corpo e alma (no sentido de metafísico). Doenças psicossomáticas, por exemplo, são evidências emblemáticas desta unicidade. As afecções não obedecem a anatomia. Em Trevor vimos que a privação do sono e a magreza extrema tornaram-se consequências de seus atos. Mas qual relação? Nem sempre há. Mais uma vez evocando a história passada, as histéricas apresentavam inúmeros sintomas conversivos como paralisias dos membros e facial, gagueiras, tosse contínua, dificuldades na fala, entre outros. Grosso modo, travavam uma luta entre desejo e censura, culminando nestas manifestações somáticas numa espécie de sinfonia sem maestro.
O sofrimento de Trevor nos dá indícios de chegar ao fim quando ele se entrega à polícia. Paradoxalmente, agora encarcerado, conquista sua liberdade. Dormir é acalento a sua alma e, quem sabe, gradativamente, seu corpo livre da tortura e aflição, recupere o vigor de outrora. O operário nos provoca muitas reflexões, e uma delas é a seguinte: por mais que lutemos para esconder do outro ou de si mesmo aquilo que nos aflige, este gasto enérgico é em vão. O corpo falará, insistirá e jamais cessará.
Considerando a obra lida pelo personagem no início do filme, de maneira diversa do príncipe Míchkin, que retorna a uma Rússia corrompida, protagonista de O Idiota, que representa pureza e ingenuidade, Reznik é um simulacro oposto da inocência, absorvendo a culpa em obliteração à realidade, a ela cerrando os olhos. A culpa, no entanto, não o abandona, mas o consome dia após dia.
A narrativa deste momento histórico que Trevor vivencia é contado através dos sulcos de sua carne. Parafraseando S. Freud, se a boca se cala, falam-se os dedos, no caso aqui, seu corpo denuncia.
Bruna Rosalem e Marcus Hemerly
CONTATOS COM OS AUTORES
Bruna Rosalem
Marcus Hemerly
- Nomadland: uma reflexão sobre a transitoriedade - 10 de outubro de 2024
- O vazio - 15 de agosto de 2024
- Deitar-se no divã: uma possibilidade de reescrever a própria história - 30 de junho de 2024
Psicanalista e professora. Natural de Campinas/SP, porém, atualmente reside em Balneário Camboriú/SC. Seu percurso na psicanálise começou na época do Mestrado, participando de dois grupos de estudo em Educação, Ciência e Psicanálise: Grupo PHALA (UNICAMP) e Grupo Universal (USP), desde então segue os estudos na Associação Psicanalítica de Itajaí, onde atua como professora. É mestra em Educação e Práticas Culturais (Unicamp) e Pós-graduada em Filosofia, Psicanálise e Cultura (PUC/PR). Realiza atendimentos e supervisão. Escreve para o Jornal Cultural ROL as colunas Psicanálise & Cotidiano, Cinema & Psicanálise e Crime & Psicanálise, sendo estas últimas em parceria com o escritor Marcus Hemerly. Também participa de Antologias, escrevendo contos e crônicas.