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Dolores Tucunduva: Narcisismo

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Dolores Tucunduva: Narcisismo

Maria Dolores Tucunduva
Maria Dolores Tucunduva

Muitas vezes a palavra “narcisismo” é utilizada no senso comum de maneira pejorativa, para designar um excesso de apreço por si mesmo.

Para a psicanálise, trata se de um aspecto fundamental para a constituição do sujeito. Um tanto de amor por si é necessário para confirmar e sustentar a autoestima, mas o exagero é sinal de fixação numa identificação vivida na infância.
A ilusão infantil de que o mundo gira ao nosso redor é decisiva nessa fase, mas para o desenvolvimento saudável é necessário que se dissipe, conforme deparamos com frustrações e descobrimos que não ser o centro do universo tem suas vantagens.
Afinal, ser “tudo” para alguém (como acreditamos, ainda bem pequenos, ser para nossa mãe) é um fardo pesado demais para qualquer pessoa. Alguns, no entanto, se iludem com o fascínio do papel e passam sua vida almejando o modelo inatingível de perfeição.
Diz o mito grego que Narciso era uma criança tão linda e admirada que sua mãe, Liríope, preocupada com esse excesso, levou-o até o sábio Tirésias. Ele lhe disse que o menino só teria uma vida longa se jamais visse a própria imagem.
Por muito tempo essas palavras pareceram destituídas de sentido, mas os acontecimentos que se desenrolaram mostraram seu acerto.
Na adolescência, Narciso era um jovem belíssimo, mas muito soberbo. Ao passear certo dia pelo campo, a jovem Eco o viu e se apaixonou por ele, mas o rapaz a repeliu. Um dia, cansado, Narciso dirigiu-se a uma fonte de águas límpidas.
Eis então que a profecia se realiza: ao ver-se refletido no espelho das águas, enlouqueceu de amor pelo próprio reflexo. Embevecido, não tinha olhos nem ouvidos para mais nada: não comia ou dormia. Em vão, Eco suplicava seu olhar. Mas Narciso só olhava para si. Apaixonado, ensimesmado, busca para aplacar sua dor um outro que, sendo ele mesmo, não lhe responde.
Realiza-se, então, seu destino: mergulha no espelho e desaparece no encontro impossível.
Sem a possibilidade de reconhecimento do que é a própria imagem e do que é o outro, o corpo de Narciso tornou-se pura miragem e desfez-se nas águas…
E Eco, que só a Narciso perseguia, só por ele clamava, só nele vivia, petrificou-se e perdeu o poder de sua própria palavra.
Narciso não cria laços; não partilha seu encanto. Perde-se na imagem de si. Eco também se perde e, no desencontro, entrega-se à repetição compulsiva, sem poder se separar da miragem idealizada.
Com base nas ressonâncias desse mito, Freud desenvolverá um dos conceitos mais importantes de sua teoria – o narcisismo.
Mencionado pela primeira vez em seus escritos em 1909, é apresentado como uma fase própria do desenvolvimento humano, quando se realiza a passagem do autoerotismo, do prazer centrado no próprio corpo, para o reconhecimento e a busca do amor em outros objetos – diferentes de si.
Passagem importante e cheia de inquietações já que implica a saída da gratificação por aquilo que é efeito apenas da própria imagem – “Narciso só reconhece o que é espelho” – para a realização de uma das conquistas mais importantes da cultura: a possibilidade de viver, aceitar e trabalhar com a alteridade e, portanto, com as diferenças.
Freud aborda explicitamente esse conceito – efeito do confronto vivido por ele mesmo ao deparar com argumentos de Adler e Jung, que questionavam suas teorias acerca do lugar ocupado pela sexualidade na constituição da subjetividade e na compreensão das patologias.
A legitimidade do conceito justificou-se a partir da experiência freudiana com a clínica, naquilo que reconheceu como resistência dos pacientes em abandonar suas posições amorosas, nas manifestações da onipotência infantil e do pensamento mágico, nas doenças orgânicas e na hipocondria – quando toda a libido se volta para o corpo doente – e nos delírios de grandeza das psicoses.
Em O mal-estar na civilização, de 1930, Freud diz que um dos grandes obstáculos do homem em sua busca pela felicidade, e que lhe traz maiores dificuldades, é o sofrimento resultante das relações humanas, pois elas nos colocam em confronto com aquilo que, não sendo espelho, nos solicita novos posicionamentos.
Toda criança, ao nascer, é banhada por vários olhares e desejos. Quando se contemplar no espelho, não verá o simples reflexo físico de uma imagem, mas tudo o que esses olhares depositaram no seu corpo. É um momento fulgurante de “sua majestade, o bebê!”. Júbilo para a criança e para os pais, que veem renascer das cinzas sua própria imagem idealizada e todos os seus anseios irrealizados. Instante de narcisismo primário – constitutivo e alienante. O bebê será um herói, vencerá todos os perigos; trata-se de um momento necessário, mas cheio de riscos. Se não ocorre, a imagem de si pode não se constituir, pode se fragilizar, parecendo insuficiente. Se for excessivo, torna-se aprisionante, comprometendo o futuro, a possibilidade de construção de projetos e os ideais.
Se tudo correr bem, a criança se desligará desse olhar primordial e escapará do destino fatal de Narciso – embeber-se, afogado, na tentativa de perpetuar o encontro com a imagem que as águas lhe devolviam.
Os desdobramentos do narcisismo são de fundamental importância para a análise do mundo em que vivemos.
A valorização da imagem e do sucesso a qualquer custo reduz a tolerância das mínimas divergências – o que Freud chamou de narcisismo das pequenas diferenças – e acirra os conflitos, seja nas pequenas discordâncias do cotidiano ou nos grandes conflitos bélicos. Se o outro não me satisfaz, se não é espelho daquilo que almejo, se tenta opor se às minhas vontades e ameaça minha autoestima, eu o aniquilo. O terreno é propício para preconceitos, fanatismos e violência.
A tragédia vivida por Narciso não nos abandona. Deixa sempre restos que nos fazem seguir pela vida tentando reencontrar o olhar mágico que nos enlevava e nos dizia tudo que éramos.
Busca incessante de certezas, de entrega passiva às ilusões…
Helio Rubens
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