Fidel Fernando
‘O valor semântico das preposições no ensino da Língua Portuguesa’
Na trajectória de ensino da gramática, há temas que se tornam quase automáticos, repetidos sem a atenção necessária a aspectos mais profundos de uso. É o caso das preposições e da crase, frequentemente abordadas com o foco em listas e regras, mas sem uma reflexão sobre os valores semânticos e os impactos dessas pequenas partículas na construção do sentido. O aluno acaba memorizando que ʻdeʼ é uma preposição, ou que ʻàʼ requer atenção, porém, ao deparar-se com frases como ʻbolo de chocolateʼ ou ʻjantar à luz de velasʼ, a interpretação do que esses termos representam em cada contexto torna-se um desafio.
A questão, então, vai além de saber que ʻdeʼ ou ʻparaʼ são preposições, ou que o acento grave indica crase. Trata-se de entender que cada uso tem um peso, um valor, que transforma o enunciado. Vejamos: em ʻcopo de águaʼ e ʻcopo com águaʼ, a escolha da preposição indica relações distintas. No primeiro caso, podemos inferir que o copo é destinado à água. No segundo, temos a ideia concreta de um copo contendo água. São nuances que, embora sutis, mudam a mensagem que transmitimos. Como bem afirmam Evanildo Bechara e Inês Duarte, conhecer a gramática vai além de decorar estruturas: é compreender a essência de cada palavra e seu papel na comunicação.
Outro exemplo emblemático reside nas diferenças semânticas entre ʻir à lojaʼ e ʻir para a lojaʼ. Enquanto o primeiro enunciado sugere uma ida temporária, um movimento de ida e volta, o segundo comunica uma ideia de permanência, algo mais duradouro. Sem essa compreensão, o aluno perde a oportunidade de escolher a preposição que melhor expressa seu pensamento, limitando-se a seguir regras: o verbo ir é regido da preposição ʻaʼ e ʻparaʼ. A crase, por sua vez, é um caso curioso de simplificação extrema. Muitos professores se restringem a ensinar as famosas ʻregras do usoʼ, ʻdo não usoʼ e ʻdo uso facultativoʼ do acento grave, esquecendo-se de explorar o valor semântico que essa contracção da preposição representa. Considere os enunciados ʻjantar à luz de velasʼ e ʻjantar a luz de velasʼ. No primeiro, o acento grave indica uma condição: o jantar ocorre na presença da iluminação das velas. No segundo, perde-se essa ideia, tornando a frase descritiva e menos íntima, diríamos, em outros termos, impensável no mundo real. E em ʻestar à mesaʼ versus ʻestar na mesaʼ? A primeira opção transmite um sentido mais social e formal, enquanto a segunda pode ser interpretada de forma mais literal, quase cômica.
É fundamental que o ensino vá além do decorativo e se debruce sobre os valores semânticos das preposições e do acento grave na crase. Afinal, o que faz um bom escritor ou orador é, como diria Celso Cunha e Cintra, a capacidade de escolher, entre todas as opções gramaticais, aquela que melhor traduz seu pensamento. Ensinar, então, é dar ao aluno o repertório que lhe permita seleccionar palavras com precisão, clareza e propósito.
Assim, ao reflectirmos sobre o ensino da língua portuguesa, que possamos nos lembrar de que cada preposição carrega consigo uma história, uma relação, um significado. Que os alunos não apenas aprendam o que são, mas também compreendam o que significam. E, ao final, que as palavras, com suas preposições, se tornem aliadas na busca por uma comunicação mais rica e significativa
Fidel Fernando
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Fidel Fernando reside em Luanda (Angola).
Academicamente, é licenciado em Ciências da Educação, no curso de Ensino da Língua Portuguesa, pelo Instituto Superior de Ciências de Educação (ISCED/Luanda), onde concluiu sua formação em 2018. Antes disso, obteve o título de técnico médio em educação, na especialidade de Língua Portuguesa, pelo Instituto Médio Normal de Educação Marista (IMNE-Marista/Luanda), em 2013. Profissionalmente, atua como professor de Língua Portuguesa, dedicando-se à formação e ao desenvolvimento de habilidades múltiplas nos seus educandos. Além das suas funções docentes, exerce a atividade de consultor linguístico e revisor de texto, contribuindo para a clareza e precisão na comunicação escrita em diversos contextos. Tornou-se colunista do Jornal Pungo a Ndongo, onde compartilha semanalmente sua visão sobre temas atuais ligados à educação e à língua.
Bela observação.