Fidel Fernando
‘Autonomia profissional versus prescrição parental: uma reflexão a partir de Manana, de Uanhenga Xitu’


A obra literária Manana (2014), do escritor angolano Uanhenga Xitu, além de literariamente rica e moralmente provocadora, oferece preciosos elementos para a análise das tensões entre tradição, modernidade e liberdade individual.
Ao relê-la para fins de pesquisa científica, destaca-se um excerto na página 22, e transcrevo literalmente:
“Aprende ofício, sobrinho! Este é arte. Não deixa pedir esmola. Teu pai ainda aí com mania de liceu, liceu, liceu, ianhi?! 4.ª classe chega bem. Depois aprende arte. Uma data de gente que anda aí no liceu, mas com mania de fonchonário são calutêiros. Não pagam as obras que a gente faz. Alguns matam as famílias com fome. A vida deles é só ter sapatos engraxado e camisa limpo. Mas em casa só comem farinha com açúcar.”
O conselho de um tio ao sobrinho, para que este aprenda um ofício, contrapõe-se à obsessão do pai pelo ‘liceu’. Este trecho espelha fielmente a realidade de muitos jovens cujos sonhos profissionais continuam hoje bloqueados pelas imposições parentais. A sociedade ainda sustenta a falsa ideia de que a única via para a realização pessoal e profissional passa pelo ensino académico formal e pela integração no aparelho do Estado. Contra esse paradigma, urge defender a autonomia e o direito de cada indivíduo traçar o seu próprio caminho.
Em Manana, Felito, personagem da obra, não é dado aos livros; chumba repetidamente no liceu. Todavia, revela interesse e talento para a carpintaria: um ofício digno e criativo. O pai, porém, insiste em empurrá-lo para o liceu, na esperança de vê-lo engravatado, funcionário público: símbolo maior da realização social para muitos. Essa lógica persiste no século XXI, quando muitos pais projectam nos filhos os sonhos que não realizaram. Queriam ter sido advogados, jornalistas, médicos ou contabilistas, e impõem essas vontades aos filhos, sufocando talentos, paixões e vocações.
Em Pais Brilhantes, Professores Fascinantes (2003), o psicólogo Augusto Cury ensina que pais controladores geram filhos inseguros e emocionalmente fragilizados. Ao prescrever o curso que o filho deve seguir, não se orienta, anula-se-lhe a identidade. Do mesmo modo, Içami Tiba, em Quem Ama, Educa! (2002), defende que educar é preparar os filhos para serem autores do próprio destino, o que requer escutá-los, respeitá-los e confiar na sua capacidade de decisão.
Nessa linha, Leandro Karnal, ao discutir a educação moderna, lembra que a liberdade é o maior presente que se pode dar a quem se ama. Isso inclui permitir que os filhos escolham seus próprios caminhos profissionais, mesmo que não correspondam às expectativas dos pais. Ao contrário do que muitos pensam, a realização profissional não depende de cargos públicos ou títulos universitários; pode emergir de um ofício artesanal, de uma paixão por ensinar ou do espírito empreendedor. Quando um pai afirma: “Quem quiser ser professor ou enfermeiro na minha casa terá de pagar com seu próprio dinheiro”, limita as opções dos filhos e força-os a seguir trajectórias que não reflectem suas verdadeiras vontades.
Com olhar crítico sobre a sociedade contemporânea, Luís Felipe Pondé, em Filosofia para Corajosos (2014), afirma que a obsessão pela estabilidade, simbolizada pelo cargo de ‘fonchonário’, revela mais medo do que vocação. Questiona-se, assim, o valor de uma vida sacrificada em nome de um status social estagnado. Nesse contexto, a fala do tio, no excerto citado, é uma advertência lúcida: Há muitos ‘ilustres’ com sapatos engraxados e camisas limpas, mas sem dignidade, sem comida em casa e sem propinas pagas para os filhos.
Assim, a valorização do ofício e do talento pessoal não é apenas uma necessidade económica, sobretudo em tempos de desemprego juvenil alarmante, mas uma exigência moral. É preciso incentivar os jovens a serem empreendedores e criadores, e não apenas candidatos a concursos públicos. É possível (e até desejável) que existam professores, marceneiros, artistas e freelancers orgulhosos da sua profissão, e não frustrados por terem sido forçados a seguir um caminho que nunca desejaram.
A leitura de Manana é, pois, ponto de partida para uma reflexão mais ampla sobre a necessidade de mudança de paradigma na educação e nas expectativas parentais. Os pais devem escutar, apoiar e orientar, e não prescrever. A realização autêntica só acontece quando se faz o que se ama, e isso não é um cliché: é uma verdade humana, validada por pensadores, educadores e, sobretudo, pela experiência concreta de milhares de jovens em todo o mundo.
Que a literatura continue a despertar-nos para estas verdades e que, como sociedade, saibamos acolher os sonhos dos nossos filhos, mesmo quando não se parecem com os nossos. Afinal, o sucesso não tem uniforme: pode vir de uma gravata, de um avental ou das mãos calejadas de quem faz o que ama.
Fidel Fernando
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Fidel Fernando reside em Luanda (Angola).
Academicamente, é licenciado em Ciências da Educação, no curso de Ensino da Língua Portuguesa, pelo Instituto Superior de Ciências de Educação (ISCED/Luanda), onde concluiu sua formação em 2018. Antes disso, obteve o título de técnico médio em educação, na especialidade de Língua Portuguesa, pelo Instituto Médio Normal de Educação Marista (IMNE-Marista/Luanda), em 2013. Profissionalmente, atua como professor de Língua Portuguesa, dedicando-se à formação e ao desenvolvimento de habilidades múltiplas nos seus educandos. Além das suas funções docentes, exerce a atividade de consultor linguístico e revisor de texto, contribuindo para a clareza e precisão na comunicação escrita em diversos contextos. Tornou-se colunista do Jornal Pungo a Ndongo, onde compartilha semanalmente sua visão sobre temas atuais ligados à educação e à língua.

