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A maçã podre e a ética dos filósofos 

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Virgínia Assunção: ‘A maçã podre e a ética dos filósofos’ 

Virgínia Assunção
Virgínia Assunção
Imagem criada por IA do Bing – 12 de junho de 2025,
às 13:25 PM

No cesto de frutas bem cuidadas, repousava uma maçã. Vermelha, reluzente, uma escultura da natureza. À primeira vista, era a mais bela. Mas bastava uma aproximação mais atenta para que se notasse: havia uma pequena mancha escura em sua lateral. Insignificante, diriam alguns. Mas o tempo, implacável como os argumentos de Sócrates, revelou o contrário. A mancha cresceu. A doçura azedou. E, pouco a pouco, o mofo foi se espalhando pelas vizinhas, contaminando o que antes era saudável.

     O velho ditado popular — “uma maçã podre estraga o cesto” — parece simples, quase ingênuo. Mas carrega em si o peso de séculos de reflexão filosófica sobre a natureza do bem, do mal e da convivência ética; sempre ouvi da minha avó essa frase antes mesmo de conhecer os filósofos. Uma filósofa formada pela vida e as observações feitas na sua simplicidade cotidiana.

     Platão talvez enxergasse na maçã podre uma alegoria da alma desvirtuada, afastada do mundo das ideias, corrompida pelos sentidos e pela ilusão. Para ele, a ética nascia da busca pela harmonia interior e pela justiça, tanto na alma quanto na cidade. Uma alma podre, como uma fruta em decomposição, perderia sua forma ideal. E uma sociedade que a acolhe sem vigilância arrisca corromper-se por inteiro.

     Aristóteles, mais pragmático, proporia que a maçã podre não cumpria sua função de telos — sua finalidade natural. Ele veria na podridão o afastamento da virtude, e argumentaria que, assim como no caráter humano, o vício se alastra se não houver equilíbrio e vigilância constante. A ética, afinal, é um hábito: assim como a podridão, o bem também pode ser cultivado.

     Séculos depois, Immanuel Kant olharia a maçã com desconfiança, perguntando: “E se essa maçã pudesse escolher? Ela se deixaria apodrecer ou resistiria à decomposição por dever moral”. Para Kant, o agir ético não depende das consequências (o cesto todo apodrecer ou não), mas da intenção reta. Ser ético é resistir à corrupção mesmo que ninguém esteja olhando — mesmo que sejamos a única maçã ainda firme no cesto.

     Nietzsche, rebelde, talvez risse. Chamaria as maçãs saudáveis de medíocres e a podre de autêntica, de alguém que ousou apodrecer por si mesma, sem seguir o rebanho. Mas mesmo em sua crítica, está implícito um questionamento ético: o que é podre? O que é saudável? Quem determina o que é bom para o cesto?

     Vivemos cercados de maçã: no trabalho, na política, nas relações. Algumas reluzem, mas escondem feridas internas. Outras exalam um odor estranho, mas talvez tenham apenas enfrentado uma chuva inesperada. A grande questão não é a existência da maçã podre, porque sempre haverá desvios, falhas, contradições humanas, mas o que fazemos diante dela. Fingimos que não vemos? Isolamos? Tentamos curar?

     A ética, em última instância, não é sobre frutas, mas sobre pessoas e escolhas. E talvez a maior lição dos filósofos seja esta: o cesto somos todos nós. E cada decisão, cada ato, cada silêncio, apodrece ou preserva.


Virgínia Assunção

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Virginia Assuncao
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One thought on “A maçã podre e a ética dos filósofos 

  1. Virgínia, que delícia de crônica! E, para mim, mais do que o prazer de tê-la lido, o de publicá-la, para o deleite dos leitores do ROL!

    Se eu fosse jurado de um concurso literário (já o fui de oito), esta crônica certamente estaria entre as três primeiras, na classificação. Até mesmo em 1º lugar!

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