outubro 05, 2024
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Rannie Cole: conto ‘A Voz'

RannieRanielton Dario Colle: ‘A Voz’

 

Um sonho: eu atravesso a porta, ela está ali. Está escuro. Deitada sob os lençóis ela sonha. Um sonho. E eu tenho medo que acabe. Deito ao seu lado. Acaricio seus cabelos. E beijo sua testa. Acordo: na cama eu e dois gatos. Esfrego os olhos. Vontade de não levantar. Olho para o banheiro: a porta fechada. E lentamente me ponho sentado na cama. Um dos gatos se levanta sonolento. O outro nem se mexe. Essa é a rotina: caminho lentamente, ainda acordando até o banheiro, lavo o rosto e vou preparar o café. As vezes escovo o dente antes e depois; as vezes só depois.

Quem é ela? Uma estranha. Só existe ali, naquele cenário. – “Você está bem?” – sussurra uma voz em meu ouvido. Não há ninguém. São apenas recordações de algo que não existiu que tomam forma. Existem fisicamente em minha mente. – Sim – eu respondo para mim mesmo. Para a voz em meu ouvido. Para o meu delírio. Solidão? Não, eu me faço companhia. Ela me faz companhia. Sento a mesa e saboreio uma torrada quente com margarina vegana. Tomo um gole de café. – “Está bom?” – a voz pergunta – Sim – eu respondo num murmúrio.

E tem sido assim todos os dias. Vou para o trabalho. A secretária me recebe me informando dos telefonemas. Os clientes. As correspondências. Entro em minha sala. Fecho a porta e olho desanimado para a pilha de papéis em minha mesa. – “Tudo bem, você consegue” – a voz sussurra. Ela tem sido minha melhor companheira nos últimos anos. A voz…

Termina o dia. Para casa. Alimentar os gatos. Assistir a um filme. Jogar videogame. Tomar um copo de uísque. Ir dormir…

Durante anos foi assim. A voz me acompanhava por tudo. Ela me dava dicas, me ajudava a resolver problemas. Praticamente me ditava as defesas de meus clientes. Mas então, do nada, ela parou. Partiu, e eu estava só. Fiquei perdido. Acordei tarde. Não lavei o rosto. Não fui trabalhar. Eu simplesmente não sabia o que fazer. Pensei que ela voltaria então retomei à rotina. Só que não era a mesma coisa. Nunca mais será. Perdi horários: compromissos, causas, clientes. A falência veio junto à sua partida. Eu rezava a noite. Implorava por ela, pela voz. Mas nada. Então eu me dei conta do que era a solidão. A verdadeira solidão.

Tentei conversar com minha secretária, mas não era a mesma coisa. Com outras pessoas. Mulheres em barezinhos. Mulheres da vida. Colegas… nada. Eu jamais me sentiria inteiro novamente. Até que decidi ir a um médico. Ele jamais ouviu uma história como a minha. Mas me mandou a um psiquiatra. O psiquiatra me falou que eu tinha esquizofrenia. Caso raro. Sumiço espontâneo das vozes. Pediu tratamento conjunto com uma psicóloga. Então outra voz começou a falar comigo. Diferente da primeira, esta me xingava, me ofendia. Sugeria que eu me matasse. Que eu matasse outras pessoas. Dizia que eu era um fracasso. Um nada. Um ninguém. Que estavam me enganando… Então vieram os remédios. Uma aposentadoria forçada por invalidez. A tentativa de suicídio. A escuridão. O medo.

E os gatos sumiram: sem vozes, sem vida! A solidão infinita dos dias. Nem filme. Nem TV. Nem videogame. Sem vontade para ler… a existência se tornou um fardo. Então parei com os remédios, e um dia ela voltou: veio para dizer adeus. Foram lágrimas sem fim. E um sono agitado depois: Lençóis suados. Então a porta a minha frente: Eu abri. Entrei. Um lugar estranho. Uma luz. Uma criança. E elas eram eu: A luz. A criança. A porta. A voz.

Eu acordei em uma sala branca. Havia soro no meu braço. E minha mãe me olhava com lágrimas nos olhos: “Você está bem?” – ela sussurrou em meu ouvido. Como quando eu era criança. Meu pai transparecia tristeza e preocupação em seu rosto. Então veio um homem vestido de branco e disse que tudo ia ficar bem. Estávamos só nós dois na sala.

Helio Rubens
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