novembro 09, 2024
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O leitor participa: Renata Rodrigues nos apresenta sua tia Nena em: ‘Dizia minha tia…’ 2

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 Tia Nena

O leitor participa:

Renata Rodrigues nos apresenta sua tia Nena em: ‘Dizia minha tia…’ 2

 

Dizia minha tia, gabando de si mesma: sou pequena, mas não sou pedaço.

Toda baixinha é invocada e essa frase me faz lembrar a primeira pessoa anã que vi na vida: uma funcionária do cartório da cidade.

Eu tinha uns nove anos e fui levada pela minha mãe, junto com meus irmãos, para resolver algo sobre documentos de nossa casa no tal cartório. Meu irmão mais velho, ao redor de doze anos, e o menor não mais que quatro. Este último tinha uma dificuldade imensa em comer bem e o pior dos alimentos era o tal feijão.

Minha mãe usava de muita psicologia para convencê-lo: “Se você não comer feijão não vai crescer:  vai ficar anão”, mas ele desafiava as ameaças e pragas maternas sem o menor pudor ou remorso.  Enquanto isso, eu obedecia (apesar da ordem não ser para mim) comendo tudo e pensava no anão Tatu da série de TV ‘Ilha da Fantasia’: ele parecia bem feliz, apesar de não ter crescido, afinal feijão devia servir pra crescer mas não para se divertir.

Naquele dia, após esperar em pé com três crianças brigando civilizadamente ao seu redor, minha mãe foi chamada por um senhor muito magro e alto para ser atendida numa pequena mesa de madeira com várias pilhas de papéis. À sua frente ficavam duas cadeiras de falso couro com algumas frestas descosturadas a mostrar a espuma amarelada de seus assentos. Ela sentou-se com o caçula ao colo e, quando dei por mim, o mais velho havia sentado na outra cadeira, mostrando-me disfarçadamente a ponta da língua em provocação.

Sobrei em pé ao lado da minha mãe e juro que tentei me concentrar no senhor e seus papéis, porém, logo vi  algo bem mais interessante : uma pequena mulher sentada em um banco alto a cortar papéis numa afiada guilhotina de mesa.

Ela era perfeita: cabelos pretos bem penteados, sombra azul nos olhos, pulseira com penduricalhos dourados e longas unhas vermelho escarlate. Tudo isso numa versão miniatura de mulher que me hipnotizou por alguns minutos e minha perplexidade não passou despercebida. Não houve um sorriso simpático para uma criança curiosa e sim uma força maior a degolar o inocente papel rascunho. Mas seu rosto fechado não foi o suficiente para calar minha boca e, tão rapidamente quanto pensei, falei: “Você também não comia feijão?”

Até hoje sua resposta segue como um mistério para mim, que fui sugada no tempo e no espaço pela minha mãe, sentindo todos seus dedos ao redor do meu braço numa dor que não foi superada nem pelo intenso puxão de orelha que a seguiu.

Não ousei uma palavra no caminho de volta, nem meu irmão se aventurou a rir entre dentes como de costume, pois o risco de despertar a fera era imenso e preferimos sabiamente silenciar.

Assim aprendíamos as regras da sociedade em nossa inocência infantil: sem grandes explicações, na tentativa e erro entre beliscões e elogios, num misto que nos preparava para a vida adulta em suas alegrias e frustrações.

E acredito que o real causador de tudo isso nem percebeu o risco que corria ao se negar aos rajados grãos em seu prato, pois dormia tranquilamente em meu colo no banco de trás do carro. Acordou ao estacionarmos na garagem de casa e sorriu para minha tia, que chegava com sua sombrinha desarmada e começava a ouvir a cunhada a dizer: “Ai, Nena, nem te conto que vergonha passei hoje…!”

Sergio Diniz da Costa
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