“Tomado de uma interpretação imagética, sinestésica, senti aquela conversa como fosse uma poça d’água barrenta mexida indefinidamente com uma vara, em movimentos circulares constantes. Era isso aquela conversa: uma água que não fluía, mas revolvia-se em si mesma, todo o tempo…
Andei muito tempo de ônibus. Quando obtive a carta de habilitação e passei a dirigir veículo próprio, obviamente poucas vezes voltei à experiência de passageiro.
Recentemente deixei o carro para uma revisão. Dormiu de um dia a outro na oficina e num sábado cedo tomei um ônibus para resgatá-lo.
Enquanto esperava o coletivo, tempo que foi de uns vinte minutos, duas moças conversavam ao meu lado.
Não é de bom-tom prestar atenção em conversa alheia, mas, às vezes, pela proximidade, só mesmo se se “desligar” a percepção, caso contrário não há como fazer-se surdo.
Uma das moças contava para a outra sobre os sucessos e particularidades do patrão. Que ele comprou dois caminhões, sendo um caríssimo, um valor exorbitante, mas o tipo de coisa que dura uma vida inteira. E que ele fez da vida profissional e pessoal algo focado nos trabalho com os caminhões… E foi dizendo mais e mais, revelando saber, na verdade, muito e em profundidade da vida do chefe.
Dizia de um aspecto, entrava em outro, voltava a falar dos caminhões e foi dizendo mais sobre tais aquisições e, com o passar do tempo, fui sentindo a conversa, quase como um monólogo, pois a outra só de quando em quando reagia com um “ah”, “puxa” e a narradora seguia fluente, mas sempre no mesmo barco: era o patrão, eram os caminhões, era o patrão…
Tomado de uma interpretação imagética, sinestésica, senti aquela conversa como fosse uma poça d’água barrenta mexida indefinidamente com uma vara, em movimentos circulares constantes. Era isso aquela conversa: uma água que não fluía, mas revolvia-se em si mesma, todo o tempo…
Foi então que me dei conta de quão comum e cotidiano isto acontece: as conversas, ás vezes são como águas, ao passo que as águas não são como conversas…
Há, pois conversas que são límpidas e frescas, delas resultando um banho para a alma dos conversantes. Há outras que são como água barrenta, empoçadas ou em curso… Outras ainda, são arenosas, difíceis, pesadas. Precisam passar por uma peneira.
Há conversas que nem deveriam vir ao mundo, assemelham-se a lodaçais, carregadas de elementos insalubres.
Quando menino, chamava-me a atenção numa grande gaveta de ferramentas e materiais soltos que meu pai mantinha no quarto de despejo, uma boia metálica com um tanto de água dentro. Passavam-se os anos e eu gostava de agitar aquela esfera metálica meio amassada, para ouvir o barulhinho da água que ela continha. Um dia me quedei pensando: “essa aguinha vive no escuro e nunca sai daí…”
Questionei meu pai sobre como ficava uma água assim e ele me falou uma palavra esquisita, chamando-a de “estagnada”. Pedi melhor entendimento e ele resumiu “é água choca”.
Creio que certas conversas sejam desse tipo, uma coisa choca. Sem sal, sem açúcar, como se diz.
Há conversas feitas de água gelada, dão choque térmico de graça. Outras seguem mornas, sem contar as ferventes e apimentadas.
Há palavras doces que ensejam diálogos sublimes e outras que formatam conversas amargas. Isso é coisa do dia a dia e, pior: no mais das vezes flui de maneira incontornável.
Ao comparar as conversas a águas, penso não estar sendo tão distante de um sentido maior, pois os sábios indígenas viam nas águas dos rios, riachos e córregos as vozes de seus antepassados.
Ao dizerem disso não tratavam de uma figuração de linguagem, pois os sábios da floresta guardam um tipo de percepção infinitamente apurada, fina, límpida como as águas sãs, coisa além do conhecimento do homem branco; logo, é certo que diziam de algo vindo de dimensão mais que poética.
Gravações de vozes de multidão, se colocadas em áudio, conforme o nível de audição, lembram também grandes águas em movimento.
Bem, no início do texto afirmei que as águas são como conversas, ao passo que o contrário não é verdadeiro.
Salvo se o leitor tiver uma apreensão que não tive, quis com isso dizer que as conversas são criadas o tempo todo, resultam das emoções humanas. As águas, por sua vez, já existem, não são criadas ao sabor de sobressaltos espirituais; cumprem um ciclo natural e fundamentado. Por isso, não podem ser comparadas a conversas, tão às vezes desnaturais e no mais das vezes tremendamente faltosas de fundamento!
De qualquer modo, entre águas e conversas, uma coisa não posso deixar de reconhecer: ainda que tenha gestado a crônica e derivado nessa reflexão, prestar atenção em conversa alheia continua sendo coisa de muito pouco bom-tom…
Jorge Facury – jorgefacuryautor@gmail.com
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Natural de Sorocaba (SP), é escritor, poeta, revisor de livros e Editor-Chefe do Jornal Cultural ROL. Acadêmico Benemérito e Efetivo da FEBACLA; membro fundador da Academia de Letras de São Pedro da Aldeia – ALSPA e do Núcleo Artístico e Literário de Luanda – Angola e membro da Academia dos Intelectuais e Escritores do Brasil – AIEB. Autor de 8 livros. Jurado de concursos literários. Recebeu, dentre várias honrarias: pelo Supremo Consistório Internacional dos Embaixadores da Paz, o título Embaixador da Paz e Medalha Guardião da Paz e da Justiça; pela Augustíssima e Soberana Casa Real e Imperial dos Godos de Oriente o título de Conde; pela Soberana Ordem da Coroa de Gotland, o título de Cavaleiro Comendador; pela Real Ordem dos Cavaleiros Sarmathianos, o título de Benfeitor das Ciências, Letras e Artes; pela FEBACLA: Medalha Notório Saber Cultural, Comenda Láurea Acadêmica Qualidade de Ouro, Comenda Ativista da Cultura Nacional; Comenda Baluarte da Literatura Nacional e Chanceler da Cultura Nacional; pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Filosóficos e Históricos os títulos de Doutor Honoris Causa em Literatura, Ciências Sociais e Comunicação Social. Prêmio Cidadão de Ouro 2024