“Quem escreveu esses versos, deve ter sido uma matrona imoral.” (Afrânio Peixoto)
Corria o ano de 1907, o jornal A Imprensa, que era dirigido por José do Patrocínio Filho, instituiu um concurso de poesias.
O concurso foi vencido por uma tal de Gilka da Costa Melo, e o seu poema:
É noite. Paira no ar uma etérea magia;
nem uma asa transpõe o espaço ermo e calado;
e, o teor da amplidão, a Lua, do alto, fia
véus luminosos para o universal noivado.
Suponho ser a treva uma alcova sombria,
onde tudo repousa unido, acasalado.
A Lua tece, borda e para a Terra envia,
finos, fluidos filós, que a envolvem lado a lado.
Uma brisa sutil, úmida, fria, lassa,
erra de quando em quando. É uma noite de bodas
esta noite… há por tudo um sensual arrepio.
Sinto pelos no vento… é a Volúpia que passa,
flexuosa, a roçar por sobre as cousas todas,
como uma gata errando em seu eterno cio.
Um crítico e ensaísta famoso, Afrânio Peixoto, ao ler o poema, comentou que aquele poema só poderia ter sido escrito por uma ‘matrona imoral.
Realmente, esse poema estava envolto em uma atmosfera por demais sensual. Para a época, 1907, era erótico mesmo. Mas isso não foi nada, perto do que se seguiu.
Quando a autora, acompanhada de sua mãe, foi buscar os prêmios, qual não foi a surpresa dos organizadores ao constatar que se tratava de uma menina de apenas 14 anos e que também havia ganhado os 2º e 3º lugares, com poemas de sua autoria, mas inscritos sob pseudônimos.
Sem poder esconder o espanto, desconfiaram e chegaram mesmo a afirmar que duvidavam da autoria dos versos. Julgavam muito avançados para uma ‘criança, pois eram definitivamente eróticos.
Acentuava-se esse clima de sensualidade, o fato de ela confessar no referido poema: sentir ‘pelos’ no vento… E versos tais como: “É a Volúpia que passa, flexuosa, a se roçar, como uma gata errando em eterno cio”.
Lançou em 1915 o seu primeiro livro Cristaes Partidos, mas cinco anos antes, em 1910, então com 17 anos, casou-se com o poeta, jornalista e chargista Rodolfo de Melo Machado, sobrenome que adota para si.
Antes do livro, ela já havia conquistado algum destaque nos círculos literários de então. Olavo Bilac se propôs a prefaciar o seu livro, mas ela dispensou tal honraria, alegando que queria vencer por méritos próprios e, se tivesse a chancela do príncipe dos poetas, a sua obra seria incensada, sem que sequer chegassem a lê-la.
Gilka viveu numa época na qual as mulheres eram confinadas a uma vida doméstica e recatada, mas ela rompeu essas barreiras, com a precocidade e o erotismo que permeava os seus poemas.
Mas, não foi somente na poesia que Gilka se destacou, pois ainda em 1910, muito antes de se tornar modismo falar-se em feminismo, ela participou da fundação do Partido Republicano Feminino. O PRF foi um partido político, fundado no Rio de Janeiro, que tinha como objetivo representar e integrar as mulheres na sociedade política.
Além de tudo isso, Gilka era negra e tinha que lidar com o racismo, e sofria com o preconceito de classe, pois era pobre. Aos 23 anos, ficou viúva e teve que faxinar estações ferroviárias, para garantir o sustento dos seus dois filhos.
Em seu livro Diário Secreto, Humberto de Campos, relata como o seu colega Afrânio Peixoto – aquele mesmo que julgava tratar-se de uma ‘matrona imoral ao conhecer a obra de Gilka – decepcionou-se ao encontrar-se com a poetisa:
─ Humberto, você não imagina a tristeza que eu senti outro dia. Eu havia recebido de Gilka o pedido de um enxerto de obra minha, ou um trecho inédito, para uma antologia que ela estava organizando. E dava-me o endereço. Como era aqui perto da Câmara, na Rua da Misericórdia, e eu tivesse a carta no bolso, resolvi entregar pessoalmente, isto é, a um criado ou a pessoa que me aparecesse. Subi uma escadinha suja e escura e dei, no segundo andar, com uma porta fechando um corredor escuro. Bati e apareceu-me uma mulatinha escura, de chinelos, num vestido caseiro. Perguntei se era ali que morava D. Gilka Machado.
─ Sim, senhor; sou eu mesmo – respondeu-me a mulatinha. – O doutor faça o favor de entrar…
Afrânio continua:
─ Não entrei. Entreguei a carta, desculpando-me e sai… Mas ‘seu’ Humberto, que tristeza! Eu não conhecia a Gilka, senão de retrato: moça branca, vistosa… E fiquei penalizado de vê-la naquela alforja, onde tudo respirava pobreza e quase miséria.
Nos cinco livros que ela escreveu: Cristaes Partidos (1916), Estados da Alma (1971), Mulher Nua (1922), Meu Glorioso Pecado (1928) e Sublimação (1938) – Gilka colocou em versos os desejos, os traumas, as paixões e a sexualidade feminina pela primeira vez na poesia brasileira.
A crítica reagiu instantaneamente: Rui Barbosa (1849 – 1923), por exemplo, se perguntou “como seria possível conciliar o espírito das senhoras de boa sociedade com o espírito de uma poetisa que tem o mau gosto de escrever essas coisas plebeias”. Um jornal do Rio de Janeiro publicou uma caricatura em que Gilka aparece vestindo uma saia esvoaçante junto do trecho “eu sinto que nasci para o pecado” retirado do soneto IV do poema Reflexões, que é constituído por nove sonetos. Esse verso fora do contexto do poema, não dá a ideia que a poesia quis passar. Agripino Grieco (1888 – 1973) chamou-a da ‘bacante dos trópicos’, Emilio Moura (1902 – 1971) classificou sua obra como um ‘bailado voluptuoso’ e Humberto de Campos (1886 – 1934) a julgou como uma ‘tempestade de carnes.
Muitos acreditavam que ela fazia o que escrevia nos poemas, que era a ‘messalina hedionda’ de seus versos, colocando-a como mau exemplo de mulher. Para os críticos, por ser ‘mulata’ Gilka tinha em si uma ‘depravação vinda dos negros’.
Mas, houve quem reconhecesse seu talento literário, caso de Lima Barreto, Olavo Bilac, Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Henrique Pongetti, Nelson Rodrigues e Jorge Amado.
Em 1933, ela foi eleita pela revista O Malho, como a melhor poeta brasileira do século XX, em votação realizada com cerca de 200 intelectuais da época. Nessa votação, deixou para trás poetisas do quilate de Patrícia Galvão (Pagú), Cecilia Meireles, Henriqueta Lisboa, entre outras.
Em 1976, Jorge Amado convidou Gilka Machado para ingressar na Academia Brasileira de Letras, pois nesse ano a instituição havia modificado seus estatutos permitindo o ingresso de mulheres. Ela poderia ter sido a primeira mulher a fazer parte da ABL, mas recusou. Em 04 de novembro de 1977, Raquel de Queiroz foi eleita para a cadeira 5 da Academia, tornando-se assim a primeira mulher a ingressar na ABL.
Em 1979, recebeu o prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pela publicação do volume de suas Poesias Completas. Em 1993, para comemorar o seu centenário foi publicada outra edição de Poesias Completas. Ambas tiveram tiragens pequenas, reservadas a colecionadores, portanto, estavam esgotadas desde 1993.
Somente 24 anos depois, foi feito o resgate dessa obra. A história desse resgate, também é muito instigante. Uma estudante do Ensino Médio, que aos 13 anos, já gostava muito de literatura e principalmente poesia, vivia se perguntando: “Quem será que foi a primeira mulher brasileira a escrever poesia erótica?” Então, quando herdou de uma tia uma biblioteca de livros de poesia, obteve a resposta ao entrar em contato com os versos eróticos de Hilda Hilst.
Pesquisando sobre Hilda, chegou ao nome de Gilka Machado e apaixonou-se totalmente pelos seus versos. Mas as informações que encontrava sobre ela eram poucas, e seus livros há muito estavam esgotados.
Essa jovem, Jamyle Hanssan Rkain, agora com 24 anos e cursando Jornalismo. Fundou uma página em homenagem a Gilka no Facebook, através da qual conheceu o seu neto, o artista plástico Amauri Menezes, guardião do seu acervo aos 74 anos.
Pronto, juntou-se a fome com a vontade de comer! Amaury há muito desejava homenagear a avó e liberou o acervo para Jamyle que planejou a edição e conseguiu que Maria Lúcia Dal Farra¹, prefaciasse o livro, e também notas críticas de Heloisa Buarque de Holanda² e Constância Lima Duarte³, entre outras.
Restava agora conseguir uma editora. Bateu à porta de várias grandes editoras, mas a única que se interessou pelo projeto foi a editora Demônio Negro. O lançamento aconteceu em 08 de março de 2017, a data – Dia Internacional da Mulher – não foi pura coincidência.
É esse o livro que eu recomendo para quem gosta de poesias, principalmente as escritas por essas poetisas maravilhosas.
Gonçalves Viana – viana.gaparecido@gmail.com
NOTAS:
- Maria Lúcia Dal Farra (1944) – poetisa brasileira e professora universitária. Leciona Literatura Portuguesa na Universidade Federal do Sergipe (UFS). Em 2012, ganhou o Prêmio Jabuti pelo seu livro Alumbramentos.
- Heloisa Buarque de Holanda (1939) – ensaísta, escritora, editora e crítica literária. É professora universitária na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
- Constância Lima Duarte – Professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenadora do Grupo de Pesquisa e Letras de Minas (CNPq).
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Natural de Sorocaba (SP), é escritor, poeta, revisor de livros e Editor-Chefe do Jornal Cultural ROL. Acadêmico Benemérito e Efetivo da FEBACLA; membro fundador da Academia de Letras de São Pedro da Aldeia – ALSPA e do Núcleo Artístico e Literário de Luanda – Angola e membro da Academia dos Intelectuais e Escritores do Brasil – AIEB. Autor de 8 livros. Jurado de concursos literários. Recebeu, dentre várias honrarias: pelo Supremo Consistório Internacional dos Embaixadores da Paz, o título Embaixador da Paz e Medalha Guardião da Paz e da Justiça; pela Augustíssima e Soberana Casa Real e Imperial dos Godos de Oriente o título de Conde; pela Soberana Ordem da Coroa de Gotland, o título de Cavaleiro Comendador; pela Real Ordem dos Cavaleiros Sarmathianos, o título de Benfeitor das Ciências, Letras e Artes; pela FEBACLA: Medalha Notório Saber Cultural, Comenda Láurea Acadêmica Qualidade de Ouro, Comenda Ativista da Cultura Nacional; Comenda Baluarte da Literatura Nacional e Chanceler da Cultura Nacional; pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Filosóficos e Históricos os títulos de Doutor Honoris Causa em Literatura, Ciências Sociais e Comunicação Social. Prêmio Cidadão de Ouro 2024