O limite entre o público e o privado
Os alicerces que sustentam a nossa história, infelizmente, foram construídos tendo como base o interesse particular em detrimento do público, do bem comum. Primeiro, porque era esse o destino de toda colônia: atender aos interesses econômicos da Metrópole, o que equivalia dizer os interesses particulares da Coroa dentro do contexto do Absolutismo.
Depois, veio-nos a independência em 1822 e nos tornamos autônomos politicamente, mas governados por uma monarquia aliada a um grupo pequeno que administrava o país ao sabor de seus anseios. O povo? Ora, o povo… Dizem que o nosso primeiro imperador chegou a dizer a célebre frase: “Tudo farei para o povo, mas nada pelo povo”.
Com isso, o povo foi sendo enxotado, colocado de escanteio, sem exercício prático de sua cidadania. Surgiu a República com os ventos da esperança de um governo voltado para o bem comum. Afinal, a “res” (coisa) “publica” (de todos), já na etimologia, apontava para esse norte. Mas, a nossa criatividade não tem limites e criamos algo paradoxal: a República oligárquica, ou seja, um governo de todos, mas administrado por um pequeno grupo.
Aos trancos e barrancos, chegamos ao século XXI. Porém, praga que se instala na raiz atinge a planta toda. E é assim que esse nosso jeito de ser, agir, pensar e reagir nos deu a sensação de que o indivíduo deve estar acima do coletivo. “Mateus, primeiro aos seus…”, canta o adágio popular.
Temos a sensação de que aquilo que é público é de ninguém, quando deveríamos entender que é exatamente o contrário. Aquilo que é público pertence a todos e, por isso, deve servir a todos. Nesse sentido, aquele que não reconhece como sendo de todos o bem público depreda o banco da praça, picha o ponto de ônibus, risca as placas de trânsito. Pelo mesmo motivo, não espeita a faixa de pedestres, a fila na Unidade Básica de saúde, o estacionamento exclusivo para idosos e deficientes.
“Quem tem padrinho, não morre pagão”. E assim, cada qual tenta se segurar num galho acima de si, buscando apoio e proteção de quem “pode mais”. E, em consequência, quem pode mais é porque tem alguma relação com o poder estabelecido. E isso perpassa também pelo voto. E perpetuamos a prática de eleger aqueles que atenderão aos nossos interesses particulares. Enquanto isso, alguns sonham com o dia em que nos livraremos desse fado.
O problema maior é que essa prática – de tratar as coisas públicas como se pertencessem à esfera privada – não atinge apenas o cidadão comum, mas muito, mormente ao que ocupa cargos da administração pública. Parece ser esse o caso do atual presidente da República e seus filhos. Os fatos que se desenrolaram nos últimos tempos conduzem à ilação de que o presidente age em benefício próprio e de sua prole.
É dever de pai zelar e proteger os seus filhos. Disso não se questiona. O que não é admissível é o uso dos poderes de um cargo público para promoção pessoal. Pode até não ser esse o caso, mas as atitudes do presidente de República em relação à sua progênie não passam pelo crivo da transparência, um dos princípios da função pública.
O jornal “O Globo” noticiou, em maio deste ano, que Jair Bolsonaro condecorou dois de seus filhos duas vezes em menos de um mês. No começo do mês de maio, Eduardo e Flávio Bolsonaro receberam a Comenda de Grande Oficial da Ordem do Rio Branco por distinção de serviços meritórios e virtudes cívicas. Antes de terminar o mesmo mês, os dois irmãos receberam também a Ordem do Mérito Naval, por relevantes serviços prestados à Marinha brasileira.
Ainda que se recorra à semântica, o fato é que a palavra “distinção” em nossos dicionários do vernáculo pátrio tem como significado algo que se destaca, ou seja, que se distingue dos feitos “comuns”. Assim como relevante é sinônimo de considerável, expressivo, extraordinário. De outra feita, a honraria perde sentido. Afinal, se qualquer pessoa pode recebê-la, bastando para isso a vontade do detentor do poder para fazê-la, não existiria mérito algum no recebimento. Resta esclarecer, portanto, quais foram esses feitos extraordinários que ensejaram as tais honrarias. Além da ascendência, quais os outros feitos que qualificaram os irmãos a receberem as condecorações?
Esta semana, novamente, o presidente se manifesta com interesse em nomear a seu filho Eduardo como embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Mesmo não sendo diplomata de carreira, o que o qualificaria se o fosse, Eduardo defende a sua nomeação dizendo que é amigo dos filhos do presidente Trump, que já fez intercâmbio e fritou hambúrgueres na terra do Tio Sam.
Se fosse piada, seria de mau gosto. Porém, sabe-se que a função pleiteada está vaga há meses, possivelmente aguardando o aniversário de 35 anos de Eduardo, um dos pré-requisitos para ocupá-la. O analista político Josias de Souza afirmou que cabe ao Senado referendar a indicação feita pelo presidente. Mas, acima disso está uma questão moral, afirma Souza. Os Senadores, nas palavras de Josias de Souza, “não julgarão apenas a desqualificação de Eduardo Bolsonaro, eles avaliarão o próprio Senado. No limite, emitirão um juízo sobre o tipo de país que o Brasil deseja ser. Não parece razoável que o país inteiro tenha que passar vergonha por um presidente que não se dá ao respeito. De duas uma: ou o Senado eleva sua estatura ou rebaixa o Brasil a condição de uma autocracia bananeira”.
Bons tempos em que o “viés ideológico” mantinha o bom senso dos governantes. Tempos em que o cargo de embaixador respeitava a critérios observados em todo o mundo civilizado, visando o bem comum e não ao da família do presidente. E para terminar, a pedido do senador Flávio Bolsonaro, de acordo com a Folha de São Paulo, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, suspendeu todos os inquéritos, em todas as instâncias, que tenham sido oriundos de dados compartilhados por órgãos de controle como o COAF. Mais um presente ao filho do presidente: não será mais investigado.
Carlos Carvalho Cavalheiro – carlosccavalheiro@gmail.com
16 de julho de 2019
Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-condecora-os-filhos-eduardo-flavio-pela-segunda-vez-em-menos-de-um-mes-23682462 Acesso 16 jul 2019.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/07/toffoli-atende-a-pedido-de-flavio-bolsonaro-e-suspende-inquerito-com-dados-do-coaf.shtml Acessado em 16 jul 2019.
- O admirável mundo de João de Camargo - 2 de maio de 2024
- No palco feminista - 26 de dezembro de 2023
- Um país sem cultura é um corpo sem alma - 9 de agosto de 2023
Natural de São Paulo (SP, atualmente reside em Sorocaba. É professor de História da rede pública municipal de Porto Feliz (SP). Licenciado em História e em Pedagogia, Bacharel em Teologia e Mestre em Educação (UFSCar, campus Sorocaba). Historiador, escritor, poeta, documentarista e pesquisador de cultura popular paulista. Autor de mais de duas dezenas de livros, dentre os quais se destacam: ‘Folclore em Sorocaba’, ‘Salvadora!’, ‘Scenas da Escravidão, ‘Memória Operária’, ‘André no Céu’, ‘Entre o Sereno e os Teares’ e ‘Vadios e Imorais’. Em fevereiro de 2019, recebeu as seguintes honrarias: Título de Embaixador da Paz e Medalha Guardião da Paz e da Justiça e Medalha Notório Saber Cultural, outorgados pela FEBACLA – Federação dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes e o Título Defensor Perpétuo do Patrimônio e da Memória de Sorocaba, outorgado pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Filosóficos e Históricos. É idealizador e organizador da FLAUS – Feira do Livro dos Autores Sorocabanos