Patriotismo dos donos de supermercados
Ainda somos um povo que acredita em fórmulas mágicas. Talvez a amálgama de crenças que aqui se encontraram possa explicar essa tendência ao misticismo e a crendice. Gostamos de acreditar em super-heróis, salvadores da Pátria, em amuletos, em números de sorte, na Loteria Federal, em tanta coisa que não se explica dentro do campo da razão.
Pois bem, esta semana os proprietários de redes de supermercado anunciaram que haveria um aumento nos preços da cesta básica em torno de 20%. O presidente da República, então, solicitou aos comerciantes que tivessem “patriotismo” e não repassassem o aumento aos consumidores. E acrescentou que ele, presidente, só não poderia exigir isso na “canetada”, referindo-se a leis ou normas de controle dos preços, “porque isso não dá certo”.
A ingenuidade começa com o povo que acredita que pedidos de “patriotismo”, intermediados por sua excelência, o presidente, possam surtir algum efeito na economia, como se fosse uma oração, reza forte ou passe de mágica. Aliás, o que seria esse tal de patriotismo? Os dicionários trazem como significado a essa palavra a “devoção á Pátria”. O que isso tem a ver com preço dos produtos?
A palavra parece soar como uma muleta no vernáculo presidencial. Serve para substituir as palavras solidariedade, colaboração, fraternidade, humanidade e até mesmo o ódio a quem não pensa e age como o governo federal. Ora, o que não se pode exigir dos comerciantes brasileiros é justamente a “devoção à pátria”, pois historicamente a classe burguesa no Brasil nunca esteve atrelada a interesses que não fossem os seus. Com raras exceções, em diversas fases de nossa história a burguesia sempre foi subserviente ao capital estrangeiro e se, de alguma forma, colaborou no processo de independência do Brasil em relação a Portugal foi justamente para entregar-se aos desmandos do imperialismo britânico.
E o presidente todo poderoso – conceito dele que, com outras palavras, emitiu em diversas oportunidades[1] – não pode resolver o problema dos preços na “canetada”. Claro que não. E isso só demonstra o quanto ele não entende de economia (também palavras dele)[2] e, possivelmente, de política econômica. A começar pelo fato de que não são apenas os supermercados que controlam o preço final do produto. As indústrias, produtores e fornecedores são apenas alguns elos nessa imensa cadeia que vai sobrepondo valor em cima de valor até chegar à ponta, no consumidor.
E no meio do caminho estão as esferas governamentais que arrecadam os impostos. Também os pedágios que sobrecarregam o preço dos produtos transportados pelas rodovias. Enfim, não basta pedir e muito menos para quem não é o único responsável pelo preço final dos produtos.
Também não pode o presidente resolver na canetada porque a política econômica implantada pelo seu governo é de orientação neoliberal. E o que isso significa? Que o tamanho do Estado tende a diminuir de maneira que ele se torne apenas um “gerenciador” dos serviços. Portanto, o final dessa senda é a privatização de todos os serviços públicos (e, por isso, a gana do ministério da economia em privatizar a Empresa de Correios, o Banco do Brasil e tudo o mais que for possível) com um suposto “controle” do governo.
Foi isso o que ocorreu com os serviços de telefonia, por exemplo. Pode-se dizer que houve melhorias no atendimento, mas, por outro lado, nunca houve tanta reclamação do consumidor, sem que a agência reguladora, no caso a ANAC, tivesse de fato resolvido a situação. Matéria publicada no portal G1 deste ano divulga aquilo que nem é mais novidade, dada a repetição anual do fato: “Empresas de telecomunicação lideram reclamações de consumidores em 2019”.[3]
Bom, apesar de não ser um argumento que convença os mais jovens, a falha em comunicações por redes sociais não é um caso de “vida ou morte”. Mas e se a saúde fosse privatizada? Ou a segurança pública? Ou a educação? Estamos longe de isso ocorrer? A Reforma Administrativa enviada pelo governo diz que não.
No entanto, estão fora da reforma a nossa pseudo-elite: juízes, procuradores, parlamentares e militares.[4] Pseudo-elite porque uma elite pressupõe a existência de um projeto nacional. E esses grupos não têm ou não a apresentaram até o momento. Com exceção dos militares que com a Proclamação da república possuíam um projeto de país baseado nas ideias de Augusto Comte e do Positivismo. Mas isso foi em 1889…
[1] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/bolsonaro-desautoriza-agu-e-diz-que-recorrera-ao-supremo-de-decisao-que-barrou-ramagem-na-pf.shtml
[2] https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2019/04/12/internas_economia,749202/jair-bolsonaro-nao-sou-economista-ja-falei-que-nao-entendia-de-econ.shtml
[3] https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/03/10/empresas-de-telecomunicacao-lideram-reclamacoes-de-consumidores-em-2019.ghtml
[4] https://www.sintrajufe.org.br/ultimas-noticias-detalhe/17646/juizes-procuradores-parlamentares-e-militares-estao-fora-da-reforma-administrativa-de-bolsonaro-ataques-sao-so-para-o-andar-de-baixo
Carlos Carvalho Cavalheiro
08.09.2020
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Natural de São Paulo (SP, atualmente reside em Sorocaba. É professor de História da rede pública municipal de Porto Feliz (SP). Licenciado em História e em Pedagogia, Bacharel em Teologia e Mestre em Educação (UFSCar, campus Sorocaba). Historiador, escritor, poeta, documentarista e pesquisador de cultura popular paulista. Autor de mais de duas dezenas de livros, dentre os quais se destacam: ‘Folclore em Sorocaba’, ‘Salvadora!’, ‘Scenas da Escravidão, ‘Memória Operária’, ‘André no Céu’, ‘Entre o Sereno e os Teares’ e ‘Vadios e Imorais’. Em fevereiro de 2019, recebeu as seguintes honrarias: Título de Embaixador da Paz e Medalha Guardião da Paz e da Justiça e Medalha Notório Saber Cultural, outorgados pela FEBACLA – Federação dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes e o Título Defensor Perpétuo do Patrimônio e da Memória de Sorocaba, outorgado pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Filosóficos e Históricos. É idealizador e organizador da FLAUS – Feira do Livro dos Autores Sorocabanos