Esperançosos
Dizem que Deus é brasileiro. Não tenho opinião formada sobre esse ponto. Mas, creio, sinceramente, que Pandora é a mãe de todos os brasileiros. O leitor já deve ter lido ou ouvido sobre ela. Na mitologia grega, Pandora foi a primeira mulher e recebeu uma caixa de presente dada por Zeus. Curiosa, quis saber o que havia dentro da caixa e quando a abriu deixou escapar todos os males da humanidade. Desesperada, fechou abruptamente a caixa, restando dentro dela apenas a Esperança.
Somos um povo esperançoso. Otimista ao extremo, acreditamos que o futuro sempre nos reserva algo novo e melhor. Guardamos sempre a esperança dentro da nossa caixa torácica, ou melhor, dentro do coração. E não há momento em que isso fique mais evidente do que na passagem do ano. Não importa muito se rico ou pobre. Na contagem regressiva dos últimos segundos de um ano para a entrada do outro, somos todos tomados de uma euforia otimista.
“Adeus ano velho, feliz ano novo… Que tudo se realize no ano que vai nascer…”. Ainda que a experiência de vida tenha mostrado ao longo do tempo que as mudanças raramente ocorrem (ao menos para uma situação melhor), ainda assim desejamos que tenhamos “muito dinheiro no bolso e saúde para dar e vender”.
Mas não pense o leitor que essa forma de ver o mundo é alienação. Em verdade, trata-se de importante exercício que nos permite sobreviver em meio ao caos. Uma noite repleta de esperança e de sonhos que se renovam e perpetuam a nossa espécie. Sem essa noite, possivelmente, já estaríamos extintos.
Por outro lado, devemos nos lembrar de uma importante reflexão filosófica feita pelo educador Paulo Freire: “É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo…”.
De fato, a esperança só tem sentido se dela fizermos um ideal a ser alcançado. E, além disso, se para atingi-la façamos o esforço necessário. É mais ou menos como a fé cega que torna o crente em um ser passivo a espera da providência divina.
Certa vez, Jesus disse aos seus discípulos: “… se tiverdes fé como um grão de mostarda direis a este monte: Passa daqui para acolá, e ele há de passar; e nada vos será impossível (Mt. 17.20). O rabi galileu ensinou que não bastaria fé para que as coisas acontecessem. Se tivéssemos fé e não disséssemos nada, o monte continuaria em seu lugar. É preciso ação e fé, juntos, para transformar a realidade.
Portanto, a renovação da esperança que o ano novo nos traz é salutar sim. Porém, se não aliarmos essa esperança às nossas ações, ela será inútil.
Ouvi há algum tempo uma história que parecia uma parábola. Dizia sobre uma mulher que reclamava do sabor do bolo de fubá, o qual, de tanto que o consumira, deixava-a enjoada. A sua vizinha, então, sugeriu que na próxima receita a mulher não acrescentasse o fubá, mas apenas a farinha de trigo. E, além disso, colocasse um copo de suco de laranja. Saiu um belo e apetitoso bolo de laranja. Moral da história: não se modifica o bolo se não mudar os ingredientes e o modo de fazer.
É mais ou menos isso. Se desejamos, com sinceridade, a mudança do estado das coisas, é preciso que façamos diferente do que até então temos feito. Esperança não é esperar. Esperança é manter a fé de que alcançaremos o nosso objetivo enquanto, paralelamente, construímos a ponte que nos levará até esse lugar.
O Ano Novo representa a expectativa de mudança. A palavra tem origem no Latim, mutare, que significa trocar de lugar. E a troca de lugar pressupõe a ação. Que tenhamos, então, esperança e ação: uma Esperação.
Feliz Ano Novo!
Carlos Carvalho Cavalheiro
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Natural de São Paulo (SP, atualmente reside em Sorocaba. É professor de História da rede pública municipal de Porto Feliz (SP). Licenciado em História e em Pedagogia, Bacharel em Teologia e Mestre em Educação (UFSCar, campus Sorocaba). Historiador, escritor, poeta, documentarista e pesquisador de cultura popular paulista. Autor de mais de duas dezenas de livros, dentre os quais se destacam: ‘Folclore em Sorocaba’, ‘Salvadora!’, ‘Scenas da Escravidão, ‘Memória Operária’, ‘André no Céu’, ‘Entre o Sereno e os Teares’ e ‘Vadios e Imorais’. Em fevereiro de 2019, recebeu as seguintes honrarias: Título de Embaixador da Paz e Medalha Guardião da Paz e da Justiça e Medalha Notório Saber Cultural, outorgados pela FEBACLA – Federação dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes e o Título Defensor Perpétuo do Patrimônio e da Memória de Sorocaba, outorgado pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Filosóficos e Históricos. É idealizador e organizador da FLAUS – Feira do Livro dos Autores Sorocabanos