À beira do abismo
Acordou e, após a obrigação de levar os filhos à escola, voltou para casa e deitou-se, sem nenhuma vontade de começar o dia útil. Queria dormir para que o tempo passasse e a angústia de se manter acordado diminuísse, mas seus pensamentos conflituosos não permitiam. Ricardo já havia reconhecido os sinais. O demônio interno despertara, mais uma vez. Via-se na beira do abismo de uma crise de depressão, após dois meses de estresse intenso. O gatilho era sempre o estresse. Ele já sabia.
Não sentia fome ou mesmo sede. Já não sabia o que o levava a viver mais um dia. Nada sentia. Esse era o problema. A falta de prazer em qualquer coisa, por mínima que fosse. Todavia, já havia vivenciado esses sintomas anteriormente. Não era a segunda ou a terceira vez. Já os conhecia e sabia que poderia afastá-los antes que fosse tarde demais. Assim, decidiu tomar um banho, porque se lembrou da necessidade de manter a higiene pessoal, combatendo a falta de energia que sentia e todo o terror que minava suas energias. Após o banho, lembrou-se que também era preciso escovar os dentes. Tomar café da manhã já era algo demais. Não lhe sobrara forças.
Mas trabalhou. Cometeu erros, falhas, deslizes. Mas produziu. Era um bom sinal. Buscou os filhos na escola e encomendou comida para eles. Afinal, eles sentiam fome. Até comprou sobremesa, pois lembrou que os filhos sempre esperavam algo especial na sexta-feira.
Não fez atividades físicas, nem brincou com os meninos, mas em vez de ficar isolado no quarto, esforçou-se para, à noite, ficar no sofá, mesmo que apenas de ´corpo presente`. Foi para a cama cedo, numa frustrada tentativa de conciliar o sono. Sabia que seu cérebro necessitava de descanso. Não queria ler, não queria escrever, só queria tentar se desligar de tudo. Estava exausto. E continuaria cada vez mais cansado nas próximas semanas.
Sabedor do descanso pelo qual sua mente implorava, diminuiu o ritmo de trabalho até onde pôde. Deixou de fazer atividades extras. Manteve-se concentrado com a mínima energia que dispunha. Perdera o gosto por quase tudo, exceto pela imensa vontade de não sentir aquele inferno novamente. Ele sairia daquele buraco por onde escorregava. Não chegaria ao fundo. Não desta vez.
Patrícia Alvarenga
patydany@hotmail.com
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Natural do Rio de Janeiro/RJ, é escritora e poeta. Trabalha como Analista (área processual) do Ministério Público do estado do Rio de Janeiro. É Bacharel em Letras (UFRJ) e Direito (Uerj), pós-graduada em Educação (UFRJ). Dra.h.c. e Pesquisadora em Literatura. É autora do livro de poemas ‘Tatuagens da Alma – Entre Versos e Reflexões’, editora AIL, publicado neste ano, que foi escolhido como semifinalista do concurso ‘Livro do Ano 2021’, pela Literarte (o resultado do certame ainda não foi divulgado até a presente data). Participou do projeto ‘Parede dos Imortais’, na Casa dos Poetas, em Petrópolis-RJ, através da Associação Internacional de Escritores e Artistas. É coautora de, aproximadamente, 25 coletâneas. Detentora de prêmios literários, títulos e comendas, é também Embaixadora da Paz da Organização Mundial dos Defensores dos Direitos Humanos – OMDDH.
Membra vitalícia de seis academias literárias: ACILBRAS, FEBACLA, AIML, AIL, ALSPA (fundadora) e AILAP (fundadora). É ativista cultural nas redes sociais e participa de inúmeros saraus literários. Redes sociais:
Instagram: @patriciapoeticamente. Facebook: Patrícia Alvarenga