setembro 16, 2024
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O Homem do cobertor cinza

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Eliéser Lucena: Crônica ‘O homem do cobertor cinza’

Foto do colunista Eliéser Lucena
Eliéser Lucena

E lá vem ele! Meio cambaleando, de vez em quando se equilibra. Não se sabe o motivo. Pode ser etílico, distúrbio ou padecimento, não se tem certeza. Certo mesmo é que ele estará lá, independentemente do dia, clima ou horário, é presença certa.

Causa repulsa em muitos pois está descalço, roupas rotas, fede, faltam alguns dentes, cabelos longos e barba desgrenhada. Magro e maltratado, dorme onde dá, debaixo de marquises ou paradas de ônibus, enfim, uma aparência realmente bizarra, medonha.

                Corre de um lado ao outro, conversa, faz discursos inflamados, mostra algo para alguém, discute e resolve problemas dos mais diversos, em um mundo paralelo com outra percepção ou fantasia mesmo, já que não se pode ver com quem nem os motivos que o levam a conversar sozinho.

                Muitos dizem ser desequilibrado, talvez algum tipo de patologia mental que o atinge de forma severa, talvez desilusão amorosa? Quem sabe não foi forjado assim com o tempo e hoje é apenas um reflexo de alguém que habitou aquele corpo? Um bom especialista poderia elucidar a questão.

                Há os que simplesmente ignoram, pensando se tratar de responsabilidade de algum órgão governamental, quem sabe alguma instituição religiosa (a mesma que traz a sopa). Alguns comparam com um animal a ser extirpado do convício das pessoas “normais” já que representa a sujeira a ser colocada debaixo do tapete. E diga-se: que não saia de lá.

                Mas todas as vezes que vejo o homem do cobertor cinza, muitas coisas permeiam a mente, com um olhar mais humanizado, uma vez que todos os outros olhares já foram lançados sobre aquela criatura decadente.

                Ora vejamos: é um ser humano, queiramos nós ou não. Nasceu, teve (ou tem) alguém por ele, uma família, uma mãe, um pai, irmãos, parentes, sei lá. É impossível alguém simplesmente brotar no mundo com aparentes 60 ou 70 anos, do nada e optar por viver em um mundo paralelo e pestilento.

                A partir daí começo a me perguntar quais fatores o levaram ao resultado que pode ser visto e, claro, os já citados voltam à mente. Álcool, drogas, erros de avaliações e/ou escolhas, quem sabe? Pode ser um ou todos eles. Difícil de avaliar.

                Olhando para os lados, no rumo de casa, ao atravessar a rua, temos templos religiosos de todas as vertentes. Será que até para eles o homem do cobertor cinza é invisível? Ou nem mesmo a misericórdia de Deus consegue alcançar alguém que de tanto cair, já nem tem mais identidade?

                Então vem o sentimento que nos permeia a existência, onde somos formados a reproduzirmos padrões, a acreditar em todas as certezas impostas. Somos todos seres humanos, todos irmãos e vindos da mesma raiz, ou seja, todos deveriam ao menos ter o mínimo de dignidade para sobreviver… será?

                E o pior de todos os sentimentos, o que me dá calafrios é a impotência de saber que não é o único, não será o último e, ainda assim, há uma fila para ocupar o seu lugar debaixo da marquise. Então como é que se resolve isso? Eu, infelizmente, não tenho a resposta, talvez não seja apenas uma.

                Mas uma coisa que tenho certeza é que todo mundo tem na sua rua, bairro ou cidade, um homem do cobertor cinza. Ele é praticamente uma entidade, uma presença constante, sem rosto, sem vontade e sem escolha, ele está lá, debaixo do tapete, mas à vista de todos. Ignorado como uma praga que não conseguimos nos livrar, portanto, tolerado.

                Parece que algumas percepções se perderam em um caminho de competição, onde a criação não importa, contanto que possamos crer em um criador que salve apenas a nós, os merecedores. E o que nos faz merecedores? Aí fica a cargo de cada um.

Eliéser Lucena

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Eliéser Affonso Lucena
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