COLUNA CINEMA E PSICANÁLISE
Marcus Hemerly e Bruna Rosalem: Artigo ‘Desejos e fantasias: o velado e o revelado em De Olhos Bem Fechados’
Os conflitos deflagrados por uma miríade de fatores ínsitos à complexidade do homem não passaram ao largo da retratação artística. Mormente, desdobramentos de fantasias e inquietudes sexuais, de igual modo, robustecem o tecido criativo de tramas notáveis na história da sétima arte.
Obsessão, fetiches, (Império dos Sentidos, por exemplo), violação, escapismo ao luto e à morte (O último Tango em Paris), traição, culpa ou a ausência dela (Perdas e Danos, Atração Fatal, Invasão de Privacidade), permeiam a evolução da imagem em movimento desde seus primórdios, direta e indiretamente.
Na própria obra do diretor Stanley Kubrick, as inúmeras camadas humanas foram inseridas na teia diegésica em suas formas mais versáteis. Extremos como a guerra, marginalidade, sátira social, política e econômica de viés histórico, ficção científica, e, no caso em estudo, as nuances da mente humana e suas projeções.
Inclusive, não se olvida da célebre frase atribuída a Rex Reed, pela qual “Deus fez o mundo em seis dias. No sétimo, Stanley Kubrick mandou tudo de volta para modificações”.
Na trama do filme ‘De Olhos Bem Fechados’, (Eyes wide shut, 1999), Nicole Kidman e Tom Cruise interpretam um casal nova iorquino bem sucedido – à época eram casados fora das telas -, transpondo o material original do romance Traumnovelle, Um Romance de Sonho (1926), de Arthur Schnitzler, da Veneza do século XIX para a América do século XX.
Frequentando a alta sociedade e gravitando entre os privilegiados, William “Bill” (Cruise), um médico aparentemente autoconfiante e Alice Harford (Kidman), uma curadora de arte em período sabático, tem a confiança até então inatacável, fragilizada após um despretensioso colóquio.
Ao revelar ao marido um momento de fantasia e quase infidelidade durante uma viagem, Bill é se vê diante de uma esposa possivelmente infiel e insatisfeita com a vida sexual que até então levavam. Nesse rompimento de uma cegueira descortinada em relação à possibilidade de fantasiar com práticas eróticas fora de seu normativo matrimônio, a partir de uma oportunidade, ele permite inserir-se numa jornada frenética, libertadora de seus pudores.
Numa das festas frequentadas pelo casal, a personagem vivida por Cruise encontra um pianista, velho companheiro de faculdade, que lhe revela a existência de um lugar sofisticado no qual seriam conduzidas orgias inimagináveis.
Tentando se infiltrar naquela sociedade secreta, o pacato médico se enverada por uma aventura rumo à sua própria auto (re)descoberta, deparando-se com as mais diversas personalidades e personas marginalizadas em várias facetas e derivações.
Acompanhamos Bill em sua perambulação, ou o que se pode chamar de cinema de deambulação, pelo qual através de planos sequência e travelings, que de modo símile à própria cidade, atuam de modo coadjuvante, intensificando o forte tom onírico de sua imposta peregrinação rumo a libertação sexual.
A riqueza dos desdobramentos psicológicos repousa ainda na segunda parte da fita. Após frustrada incursão àquela agremiação sexual, Bill passa a ser perseguido – ou assim ele acredita – pelos integrantes da confraria a fim de assegurar a manutenção de sua confidencialidade.
O que pode causar inquietação ao espectador, é o fato de que ora pode se concluir que determinado trecho da película se trata de um sonho, contemplação ou projeção da personagem, ora somos confrontados com a certeza de que seu medo é real e que sua experiência com as orgias de fato aconteceram.
Como já dizia Freud em uma de suas obras mais icônicas, A Interpretação dos sonhos (1900), sonho é uma realização de desejo e é também a via régia para o inconsciente.
Através dos conteúdos oníricos, imagens distorcidas, condensação e deslocamento de sentido daquilo que tomaríamos como algo consciente, nos sonhos aparecem enquanto fantasias, desejos, temores, traumas, porém sempre postos de maneira misteriosa, confusa, talvez angustiante ou mesmo prazerosa como se fossem códigos que precisam ser decifrados, para que questões importantes de nosso psiquismo se revelem.
E uma vez sonhado, entregue, não é possível voltar atrás. Parece o momento de Bill quando experimenta sensações nunca antes sentidas e que talvez jamais traga o velho Bill de volta.
Estamos diante mais uma vez de um conflito entre manter-se como o homem de aparência cordial, contida e ponderada ou entregar-se às luxúrias carnais. Talvez as máscaras naquele baile soassem como particulares (e porque não, peculiares) esconderijos de um velado sujeito animalesco, selvagem, sedento por um gozo extremo (se é que isso seja possível).
A própria estética do culto nos remete ao vivo das cores do sangue, da carne, ao mesmo tempo contrastante com o sombrio e quente. Poético e aterrorizante. Nefasto e almo. No mesmo viés daquilo que pulsa à Bill e a repressão de outrora.
Numa sociedade que nos provoca tanto mal-estar _ remetendo mais uma vez à Freud ao escrever Mal-estar na civilização (1930) _ que nos enreda nas tramas das crenças, dos medos, das repressões dos sentimentos e das paixões, do esfalecer das ideias e das possibilidades de criação, dos empecilhos em inventar e reinventar saídas inusitadas para um cotidiano que insiste em nos manter alienados ao máximo; falar em gozo é algo sempre complexo.
Claro que não dá para gozar o tempo todo, porém De olhos bem fechados consegue tocar numa questão ainda muita cara: as nuances da sexualidade, suas diversidades e, inevitavelmente, seus tabus. Principalmente no que se refere ao “casal perfeito” que segue a tradição do casamento nuclear: pai, mãe, filho.
O mal-estar provocado pelas quase três horas de filme, cadenciado, sem pressa em retratar o quão despudorados podem ser os nossos mais sórdidos desejos, Kubrick faz questão de nos incitar a dúvida se tudo não passaria de um longo sonho ou se realmente aconteceu, quase como “botar em panos quentes” para que aquela realidade não seja tão agressiva, justamente vindo de um casal tão “normal”, ordinário, ser capaz de ansiar por tais experiências.
Seria talvez uma crítica “moralizante” do diretor, ou um chiste para aguçar a curiosidade do espectador, ou ainda, uma cutucada para nos apontar até onde podem ir nossas próprias inversões? Será que o recurso do sonho, ao interromper aquelas orgias e por fim à entrega ao prazer seria um corte brusco, quase uma “brochada”, daquilo que poderíamos desejar, mas jamais poderíamos ter? E mais, sustentar uma vida à la Dionísio? Kubrick nos faz pensar.
Voltando o olhar para o cenário do suspense psicológico nas últimas duas décadas, identifica-se um bom presságio no que diz respeito ao gradual retorno do cinema rotulado como autoral. Anualmente, somos brindados com lançamentos de cinebiografias, filmes históricos, dramas e tramas que mimetizam o entretenimento e reflexão intelectiva. Nesse plano, se de um lado, os estúdios, assim como qualquer forma de empreendimento, necessitam de lucro, de outro lado, é interessante observar que os títulos que permeiam os festivais e premiações são os mesmos procurados pelo público tanto nos cinemas como em serviços de streaming.
Por defluência, a sétima arte ainda que povoada por produções meramente comerciais e de apelo artístico reduzido, ainda consegue afagar os olhos e sentimentos daqueles que apreciam o verdadeiro incitar da arte. É o caso da trama aqui analisada, comprova que ainda é possível criar um belo roteiro, cheio de provocações e perturbações ao espírito. Nos incomoda e, talvez, seja este um interessante artifício que faz a produção gravitar até hoje em nosso imaginário.
Marcus Hemerly e Bruna Rosalem
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Psicanalista e professora. Natural de Campinas/SP, porém, atualmente reside em Balneário Camboriú/SC. Seu percurso na psicanálise começou na época do Mestrado, participando de dois grupos de estudo em Educação, Ciência e Psicanálise: Grupo PHALA (UNICAMP) e Grupo Universal (USP), desde então segue os estudos na Associação Psicanalítica de Itajaí, onde atua como professora. É mestra em Educação e Práticas Culturais (Unicamp) e Pós-graduada em Filosofia, Psicanálise e Cultura (PUC/PR). Realiza atendimentos e supervisão. Escreve para o Jornal Cultural ROL as colunas Psicanálise & Cotidiano, Cinema & Psicanálise e Crime & Psicanálise, sendo estas últimas em parceria com o escritor Marcus Hemerly. Também participa de Antologias, escrevendo contos e crônicas.