COLUNA CINEMA EM TELA
Marcus Hemerly:
“A substância: ‘A matéria de que os sonhos são feitos?'”
Ao final do clássico Noir de 1941, ‘O Falcão Maltês’, o detetive Sam Spade (Humphrey Bogart), tem em suas mãos a estatueta responsável por mortes, ganância e dor, e ao ser indagado a respeito do artefato, responde: “É a matéria de que os sonhos são feitos”. Dinheiro? Poder? A resposta é intuitiva, a ilusão. Inquestionável que as pessoas, não raro, vivem se mãos dadas a ela. Nos últimos tempos, algumas produções têm sido distribuídas nos circuitos de cinema e streaming com forte hype nas redes sociais, fazendo até mesmo, que os títulos sejam julgados ou criticados pelos espectadores antes da sessão.
O filme ‘A Substância’, lançado recentemente, foi recebido com antecipação pelo público, prometendo uma roupagem diferente do que vem sendo produzido, causando controversas nas várias mostras na qual foi exibido.
O título inovador, ao mesmo tempo, rememora o conhecido, entrelaçando de maneira extremamente eficaz os vieses psicológicos e mais gráficos. E, quando se menciona o body horror, ou terror corporal, comumente o diretor canadense
é lembrado, não sem razão de ser, tendo em vista que o realizador foi responsável por filmes icônicos como ‘A Mosca’, ‘Rabid – Enraivecida na Fúria do Sexo’, ‘The Brood, Filhos do Medo’ e ‘Videodrome’.
No entanto, não se olvida de que as manifestações corporais mais chocantes em tom de coadjuvação à trama remontam, até mesmo, ao cinema mudo francês e produções das décadas de vinte e trinta, perpassando a aura japonesa do sobrenatural, de forma mais relavada nos anos sessenta. A partir dos anos 2000, uma redescoberta de estilos e subgêneros, inclusive no panorama nacional, tem revitalizado o cinema contemporâneo, não há de se negar.
Em substância, dirigido e roteirizado por Coralie Fargeat (de Vingança), Demi Moore vive a estrela veterana Elisabeth Sparkle, que ao ver sua carreira em declínio e ante a dificuldade em aceitar o envelhecimento, faz uso de uma droga experimental que lhe traz novamente a beleza e o corpo jovem, o que é descrito como a versão melhorada de si mesma. Como já é esperado, o preço a pagar é alto. Transformando-se em sua formatação mais jovem, a modelo Sue (Margaret Qualley), logo conquista a fama fazendo com que ela retome o seu lugar na TV, ainda que por meio de sua “versão” em tom de alter ego.
A partir dessa premissa, algumas questões são trazidas à tona, ainda que indiretamente. Deparamos com o fato de que Sue/Elisabeth está disposta a atrair e trair a todos a fim de firmar-se no estrelato, consumindo de maneira mais desbragada a energia de sua criadora, cuja escalada atinge seu ápice no momento que esta traição passa a ser dirigida a si própria.
A par disso, a linha tênue do limite em relação à ditadura do corpo, da moda, do tempo e da suposta adaptabilidade humana são questionados. No longa, as realizações da estrela já não mais em ascensão, são por ela anuladas, ao passo que trava lutas diárias com a passagem do tempo, cenário intensificado exponencialmente pela indústria do entretenimento que monopoliza a juventude, ameaçando sua sobrevivência social, tal como se enxerga em relação ao seu derredor. O corpo não é o mesmo de quando teve seu nome gravado na calçada da fama em Los Angeles, até que num acaso cotidiano, se depara com a substância que intitula a história. Ao ser injetada, um novo ser irrompe, literalmente, de seu interior, fazendo com que possa novamente galgar um lugar ao sol artificial dos holofotes da fama.
À frente do antigo programa de sua versão original, Sue conquista com sua popularidade, formas e carisma. Por óbvio, assim como os toxicômanos atingem um limite de prazer que não mais pode ser ultrapassado e que coexiste à constante abstinência, desenha-se um momento em que as exigências de sua nova realidade cobram o pedágio. Ciente de tais provocações, as constantes mutações e momentos chocantes de terror corporal não impressionam tanto quanto a mensagem por debaixo casca/pele.
Decerto, uma sociedade a cada dia mais doente e dependente de medicações, indissociável da terapia, são elementos que assomam à mente do espectador de forma frenética. Pertinente ainda traçar um paralelo com a famosa de história de Robert Louis Stevenson, ‘O médico e o Monstro’, pois assim como o Dr Jekyll não mais pode diferenciar a si próprio do pérfido Mr. Hyde, a partir de qual estágio – talvez irreversível – a personagem não consegue, ao mirar o espelho, saber a real identidade daquela que lhe encara de volta?
A filosofia socrática suscita a famosa ideia do conhece-te a ti mesmo, como fonte inseparável do ser, evidenciando sua relevância na manutenção do equilíbrio (inclusive citado de forma relevante no filme). Catena já cantou que “narciso acha o feio o que não é espelho”. O final catártico de Elisabeth/Sue reafirma tal proposição.
Marcus Hemerly
Contatos com o autor
- Onomástico - 4 de novembro de 2024
- A substância - 26 de outubro de 2024
- Revista Mystério Retrô - 9 de setembro de 2024
Nasceu em Cachoeiro de Itapemirim/ES, em 1989. Formado em Direito, é servidor do Poder Judiciário do Estado do Espírito Santo. Autor da obra “Verso e Prosa: Excertos de Acertos”, originalmente publicada em formato físico, coautor em antologias poéticas e de contos. Membro de Academias Literárias, recebeu prêmios e comendas, tais como: “Prêmio Monteiro Lobato”, “Prêmio Cidade de São Pedro da Aldeia de Literatura”, “Grande Prêmio Internacional de Literatura Machado de Assis”, “Medalha Patrono das Letras e das Ciências, Dom Pedro II”, “Medalha Notório Saber Cultura” e foi um dos vencedores do concurso internacional de poesias “Covid Times Poetry” promovido pela ONG “WHD – World Humanitarian Drive”. Foi agraciado com o Título de Doutor Honoris Causa em Literatura, pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Históricos e Filosóficos, com a Comenda Olavo Bilac Príncipe dos Poetas, pela Federação Brasileira dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes (FEBACLA), o título de Cavaleiro Comendador da Ordem de Gotland, pela Soberana Casa Real e Imperial dos Godos de Oriente, dentre outras honrarias. É colunista de cinema e literatura, contribuindo para sites e jornais eletrônicos