Lucélia Gonçalves: Conto ‘Um acerto de Deus’

Miguelito era um menino sem pai, sem mãe, e sem ninguém. O resto da família evaporara-se no tempo como poeira esquecida. Vivia no Benfica, em Luanda, numa casa improvisada de madeira, chapa e pedra — um abrigo que ele mesmo erguera com restos do mundo. Apesar da miséria, havia nele uma luz rara: era risonho, inteligente, engraçado, e nutria uma fé em Nzambi que nem o abandono conseguiu apagar.
Todos os dias saía à rua, batendo de porta em porta, remexendo lixos, bebendo o que encontrava. Num desses dias, tropeçou numa senhora e os pertences dela rolaram pelo chão. Tentou ajudar, mas foi logo chamado de ladrão. Desesperado, correu até sua casa, onde medo e lágrimas o apertaram sem pedir licença. Caiu de joelhos e orou:
— Nzambi, tu que não existes para mim, leva-me ao inferno celeste. Talvez lá encontre descanso. Serei eu um erro?
Sem resposta, adormeceu em pranto. Naquela cidade de desordem, bastava um “agarra o gatuno” para transformar uma criança em defunto. Mas ele escapou. No sono, sonhou com a mãe. Ela lhe disse que o amava, que Deus nunca o deixaria, e que o erro não era ele, mas o mundo que o pariu. Ao acordar, Miguelito sorriu como quem acabara de vencer a Copa do Mundo — era a primeira vez, em anos, que sonhava com a mãe.
Lavou o rosto e saiu. Encontrou o Sr. Zua, homem de bom coração, distribuindo comida a crianças. Aproximou-se, mas um menino roubou sua sacola e fugiu. Quis correr atrás, mas Zua o impediu:
— Deixa, meu filho. Nzambi tem o melhor pra ti. Toma outra sacola e volta sempre. Estou aqui às segundas e quartas.
A partir daí, Miguelito passou a voltar. Com o tempo, ganhou coragem e desabafou. Falou de sua vida, do sonho com a mãe, da fé em Nzambi, e dos anos de estudo que não lhe serviram de nada. Zua ouviu, emocionado:
— Entendo-te, meu filho. Mas não basta crer, é preciso lutar. Este país já deu o que tinha. Agora é correr atrás dos teus sonhos. Limpa essas lágrimas e diz: como posso te ajudar?
Miguelito calou-se. Então Zua, sentindo a solidão apertar, perguntou:
— Queres viver comigo? Como pai e filho?
— Quero, sim! — respondeu Miguelito, os olhos brilhando. — Mas por que eu?
— Porque te observo faz tempo. És especial. Sempre quis um filho como tu.
E assim foi. Com o tempo, Miguelito foi legalmente adotado. Num amanhecer, encostado à janela do quarto, contemplava a paisagem, e entendeu. Nzambi o ouvira: respondeu-lhe no sonho, confirmou-lhe no gesto de Zua. Ele percebeu que não era só questão de fé, mas de coragem. Que ser mendigo é condição, não destino. Que humildade, amor, empatia e fé formam a estrada do milagre.
Chorando, murmurou para si, enfim em paz: — Nunca fui um erro. Eu sou, e sempre fui, um acerto de Deus.
Lucélia Gonçalves
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Natural de Sorocaba (SP), é escritor, poeta e Editor-Chefe do Jornal Cultural ROL. Acadêmico Benemérito e Efetivo da FEBACLA; membro fundador da Academia de Letras de São Pedro da Aldeia – ALSPA e do Núcleo Artístico e Literário de Luanda – Angola – NALA, e membro da Academia dos Intelectuais e Escritores do Brasil – AIEB. Autor de 8 livros. Jurado de concursos literários. Recebeu, dentre vários titulos: pelo Supremo Consistório Internacional dos Embaixadores da Paz, Embaixador da Paz e Medalha Guardião da Paz e da Justiça; pela Soberana Ordem da Coroa de Gotland, Cavaleiro Comendador; pela Real Ordem dos Cavaleiros Sarmathianos, Benfeitor das Ciências, Letras e Artes; pela FEBACLA: Medalha Notório Saber Cultural, Comenda Láurea Acadêmica Qualidade de Ouro; Comenda Baluarte da Literatura Nacional e Chanceler da Cultura Nacional; pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Filosóficos e Históricos, Pesquisador em Artes e Literatura; Pela Academia de Letras de São Pedro da Aldeia, o Título Imortal Monumento Cultural e Título Honra Acadêmica, pela categoria Cultura Nacional e Belas Artes; Prêmio Cidadão de Ouro 2024, concedido por Laude Kämpos. Pelo Movimento Cultivista Brasileiro, o Prêmio Incentivador da Arte e da Cultura,

