Elaine dos Santos: ‘Reflexões sobre o que é Literatura’


às 10:12 PM
Professores graduados em Letras, mas que têm uma forte preferência pelos estudos literários, costumam debater-se entre o que é Literatura e o que não é Literatura.
Aliás, eis um dos grandes problemas diante alunos ‘novatos’ nos cursos de graduação é ensinar-lhes que escritos de autoajuda ou manuais de vendas não são exatamente o que eles devem considerar Literatura para ser estudada, analisada.
Recentemente, uma declaração da professora, pesquisadora, tradutora, Aurora Formoni Bernardini gerou controvérsias, visto que ela valoriza forma, conteúdo e novos horizontes no texto literário. De fato, a Literatura que agrada o nosso juízo estético (que é diferente de gosto estético, como estudiosos, como críticos, é aquela que consegue equilibrar forma e conteúdo.
Antes, porém, uma explicação: Hans Robert Jauss, em uma conferência na Alemanha, em 1967, acrescentou o leitor como parte da tríade que configura uma obra literária. Quanto mais uma pessoa lê, maior o seu horizonte de expectativas. Mas está em pauta o seu gosto literário.
Quem leu as grandes epopeias gregas, como ‘Ilíada‘, ‘Odisseia‘; ou ‘Eneida‘, marco fundacional da cultura romana ou ‘Os Lusíadas‘, em que Camões canta a saga dos grandes navegadores, lerá com maior criticidade um poema que se proponha ser épico.
Quando Bernardini aponta ‘novos horizontes’, é impossível não pensar em ‘Os sofrimentos do jovem Werther‘, de Goethe, publicado em 1774. Trata-se de um romance de um amor arrebatador, conflituoso, em que a vida só teria sentido se a amada estivesse com Werther. Traz um tom autobiográfico, intimista – que, neste caso, revela-se por cartas amorosas.
Dentro de um cenário que prenuncia a Primeira Revolução Industrial, a transição entre a racionalidade burguesa e o derramamento amoroso do Romantismo, Werther traz o homem em um embate individual, uma luta consigo mesmo, opondo-se, pois, sentimentalismo e industrialização.
Esse desencantamento social, diante de uma transformação ainda não concretizada plenamente: a Revolução Industrial, teria feito muitos jovens desistirem da vida do mesmo modo como Werther, a tal ponto que a obra foi proibida na Alemanha em anos posteriores.
Mais perto do nosso horizonte, penso que ficariam ‘Madame Bovary‘, de Flaubert; ‘O Primo Basílio‘, de Eça de Queiróz, e a nossa Capitu em ‘Dom Casmurro‘, de Machado de Assis, que introduzem o tema do adultério. Evidentemente, aqui, está toda uma crítica que rompe com o ideário do Romantismo até então em voga: “Casaram-se e foram felizes para sempre” (ou a empresa romântica em que sogro e genro estabelecem uma sociedade).
Mas conteúdo e forma? Na graduação, ao trabalhar com ‘Os Lusíadas’, os meus alunos impressionavam-se com a quantidade de versos compostos em métrica decassílaba (dez sílabas métricas). Refiro-me ao cuidado de um poeta que se debruça sobre os seus versos e seleciona palavras, sinônimos de palavras, sons, classes de palavras que lhe deem a rima rica, perfeita.
O Parnasianismo, que vigorou entre nós, no final do século XIX, foi exímio nesse cuidado com a forma, que acabou desconsiderando o conteúdo. Alberto de Oliveira é o exemplo mais bem acabado, uma vez que, em especial, Raimundo Correa traga um romantismo tardio.
O início do século XX, as transformações sociais e tecnológicas impressionaram o ser humano, sobretudo, europeu: carros, locomotivas, avião. Era preciso um texto mais ágil, tão veloz como a máquina que se apresentava. Rompeu-se com a forma.
O horror da Primeira Guerra Mundial também provocou esse rompimento. O avião, por exemplo, foi usado como arma de guerra. O Holocausto nazista, isto é, a matança de judeus na Alemanha, por sua vez, gerou a Literatura de Testemunho. Na verdade, em todas as situações em que o ser humano se vê defrontado com a violência e falta de liberdade, as letras são uma salvação. Prosperaram textos intimistas durante a pandemia.
Colocar-me-ia a favor de Aurora Formoni Bernardini: nem todos os textos serão sucesso, nem todos os textos serão eternos, alguns ficarão como boas lembranças. Falta-lhes literariedade (nos meus textos, identifico essa falta! Não é à toa que opto por crônica, quase ensaio).
É importante, no entanto, afirmar: Maria Firmina dos Reis produziu e publicou os seus textos no Brasil escravocrata, era mulher, era mestiça, era professora, usou um pseudônimo e, ainda assim, com a passagem dos anos, foi redescoberta, post-mortem, e é reconhecida como a primeira romancista do Romantismo no Brasil – não nos intimidemos. Permito-me parafrasear Camões: Os tempos mudam, as vontades mudam, tudo é composto por mudança. Quem sabe?
Elaine dos Santos
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Natural de Restinga Seca (RS), é licenciada em Letras, Mestre e Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Tem formação em espanhol pela Universidad de La Republica, Montevidéu. Possui 29 artigos acadêmicos publicados em revistas nacionais na área de Letras com classificação Qualis, além de participação em eventos com trabalhos completos e resumos. É autora do livro Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro mambembe, adaptação de sua tese de doutorado, e coautora em outros livros versando sobre Direito, História, Educação e Letras. É revisora de textos acadêmicos, cronista com textos publicados em jornais regionais e estaduais e participação em mais de 80 antologias.


Fascinante trabajo gracias
Acredito que é preciso pensar a Literatura sob a ótica dos professores e pesquisadores de Literatura; assim como é preciso pensar a pesquisa como um ato ético e responsável. Agradeço a sua leitura.
Sensacional artigo que traz à luz a forma de criticar modismos e valorizar o primor literário, bravissima!
Grata!
Nós, professores de Literatura, dedicamo-nos durante anos a estudar o fenômeno literário, as suas características, as diferentes formas como a crítica literária fez a leitura de obras exponenciais, parece-me lícito que reflitamos sobre isso em um momento de transição das Letras e das Artes; alguns passarão, alguns passarinho. Obrigada por sua leitura.
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