Manoel Peres Sobrinho:
‘Mãe: Saber e sabor’
Com o prato feito montanha, assentado à mesa da cozinha, Artur observava sua mãe, ainda no fogão, em sua faina diária. Estava tão entretida com seus importantes afazeres que nem reparou o quanto seu filho a dissecava, observando-a em seu atencioso e fastidioso trabalho doméstico.
Entre dona Silvia e seu filho havia um enorme abismo intransponível. A única coisa que os ligava era o fato de serem mãe e filho. O resto constituía-se numa estranheza que causava dó. Em sua formação intelectual, ela só tinha aprendido escrever o nome. Aliás, desenhá-lo, juntando as letras com muita dificuldade e com uma caligrafia horrível, quase ininteligível, com um significado que ela pouco sabia e muito desconfiava. Já o rapaz, pôde estudar e seguir em frente em sua carreira profissional. Com mestrado e, preparando-se para o doutorado, tinha uma concepção de mundo bem diferente, que sua mãe jamais poderia sequer imaginar. Dois mundos separados num mesmo lar.
Entre uma garfada e outra, numa espécie de diálogo monológico, e não sabendo muito bem o porquê, começou com um exame minucioso de sua progenitora.
— Quem era ela, de verdade? Que sonhos acalentava ainda aquele pobre coração? De todas as suas ilusões da vida e seus planos de sucesso e conquistas, quais conseguiu atingir em sua precária existência de serviço, de negação pessoal e abnegada dedicação?” —. Artur sentiu um nó na garganta, como se fosse agente principal da desgraça daquela pobre criatura. Teve vontade de chorar. Tentou disfarçar, quando ela se virou para ele e perguntou alguma coisa sobre sua namorada.
Na correria da vida estamos todos tão ocupados com nossas egoísticas prioridades e urgências fantasiosas que, às vezes, até aqueles mais próximos de nós se constituem em perfeitos estranhos. Seres blindados e indevassáveis que de comum conosco só o fato de compartilhar do mesmo espaço dentro de casa.
Esboçou um sorriso, quando se lembrou de sua queda da cadeira e quebrou o braço. Era tão pequeno, que mesmo em cima da cadeira, não conseguia olhar direito para fora. Quando resolveu erguer os pezinhos, resvalou-os caindo de bruços em cima dos braços.
Alarmada com seus gritos de horror e dor, veio dona Silvia voando como a mamãe águia socorrer o seu filhote. Ambos choravam apavorados: o menino ao ver o braço partido e sentindo imensa dor; a mãe, desesperada por não saber o que fazer para aliviá-lo daquele sofrimento.
Quanta ternura! Quanta dedicação! Que sentido de responsabilidade consome seu ser por dentro e por fora; que muda o rumo de sua vida quantas vezes forem necessárias! O quê as mães têm de divino que as faz tão singulares? Tão necessárias e indisfarçavelmente insubstituíveis? Deixa o seu pão precioso para alimentar o seu filhote.
Sorri o sorriso inocente de seu filho como a aprovar sua alegria; alegra-se com o seu sucesso; mas se oprime com sua dor; somatiza sua desgraça e tenta compensar sua inépcia com sua presença e palavras de conforto.
Artur levantou-se, foi até ao banheiro e lavou o rosto. Respirou fundo e voltou para o seu prato montanhoso e prosseguiu com o almoço. Mas as lembranças prorrompiam aos borbotões.
Seu primeiro dia de aula na escolinha da Rua Savóia. Que sofrimento! Encarar um mundo totalmente novo. Com pessoas estranhas. Ter que viver sem sua mãe. Sem sua saia para se agarrar quando inseguro ou ameaçado!
— Mãe, eu não quero ir à escola, não!
— E por que não, filho? — disse ela, esperando aquela reação do menino.
— Não conheço ninguém lá! E se eu não gostar da professora? Posso levar o cachorro pra brincar no recreio?
— Não diga bobagens, menino! Todas as professoras são muito boazinhas. Ela será sua segunda mãe. Você vai ver. Quando se acostumar com a escola, não vai mais querer sair de lá, ouviu?
Suas palavras diziam o que era necessário, mas o seu coração sofria a separação do filho; e por dentro chorava os horrores da insegurança do filho. Sabia que era necessário, para o bem da criança; mas desejava que aquilo nunca houvesse sido necessário.
Isso ninguém viu. Silvio jamais chegou sequer a suspeitar desse sofrimento materno. Os olhos de bondade e sua conversa necessária de “pedagoga” eram desmentidos por seu coração que sofria a separação. De volta pra casa, dona Silvia tentava se convencer da necessidade daquilo tudo, e dizia de si para si mesma:
— Ele já é um homenzinho, um homenzinho. Precisa começar a se virar sozinho! Tudo novo vai ser muito bom! Bom pra todos nós! Se Deus quiser. Seu consolo físico era o cachorrinho de Silvio, que também sofria com sua ausência. Mãe e cão repartiam a ausência de seu querido.
E a sua saída para Uberlândia para fazer o Curso de Química? Seria cortar em definitivo o cordão umbilical. Da Rua Savóia o menino vinha voando pra casa na Rua Willian Snap. Em outro estado, seria muito diferente. O que restava eram só telefonemas, e cada vez mais ausentes.
Disciplinas, trabalhos, pesquisas, provas, namoradas e bailinhos em finais de semana. Dona Silvia estava perdendo, de alguma forma, o coração de seu filho. Já não era prioridade, às vezes, até aborrecimento. Se havia “perdido” o filho, buscava apegar-se com Deus. Ele sabia, por Sua onisciência, com certeza, onde o filho amado estava, com quem estava, e como estava. Suas esperanças eram renovadas através da oração. Sua presença agora era espiritual; seus recursos e eficácia haviam sido transferidos para Deus. Ainda assim ela estava lá. De alguma maneira.
Terminado o almoço, Silvio levou o prato para a pia. Coisa que ele nunca fazia. Talvez fosse só uma forma de aproximar-se dela. Precisava fazer aquilo sem levantar suspeitas. Olhou terna e demoradamente o rosto da sua mãe. Sentiu que sua manifestação de apreço e carinho eram correspondidos. Não ousou dizer nada. Temia dar um fora. O nó na garganta havia voltado mais violento. Sem muito saber o porquê, perguntou:
— A senhora está bem?
— Tô, sim — respondeu ela espontaneamente. Num impulso e sem poder resistir Silvio atirou-se ao pescoço da mãe e não parava de dizer:
— Mãe, eu te amo! Mãe, eu te amo! A senhora é tudo pra mim! — E ela, com toda simplicidade da mãe que ele conhecia tão bem, disse surpresa:
— O que é isso menino, tá louco?
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Natural de Sorocaba (SP), é escritor, poeta e Editor-Chefe do Jornal Cultural ROL. Acadêmico Benemérito e Efetivo da FEBACLA; membro fundador da Academia de Letras de São Pedro da Aldeia – ALSPA e do Núcleo Artístico e Literário de Luanda – Angola – NALA, e membro da Academia dos Intelectuais e Escritores do Brasil – AIEB. Autor de 8 livros. Jurado de concursos literários. Recebeu, dentre vários titulos: pelo Supremo Consistório Internacional dos Embaixadores da Paz, Embaixador da Paz e Medalha Guardião da Paz e da Justiça; pela Soberana Ordem da Coroa de Gotland, Cavaleiro Comendador; pela Real Ordem dos Cavaleiros Sarmathianos, Benfeitor das Ciências, Letras e Artes; pela FEBACLA: Medalha Notório Saber Cultural, Comenda Láurea Acadêmica Qualidade de Ouro; Comenda Baluarte da Literatura Nacional e Chanceler da Cultura Nacional; pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Filosóficos e Históricos, Pesquisador em Artes e Literatura; Pela Academia de Letras de São Pedro da Aldeia, o Título Imortal Monumento Cultural e Título Honra Acadêmica, pela categoria Cultura Nacional e Belas Artes; Prêmio Cidadão de Ouro 2024, concedido por Laude Kämpos. Pelo Movimento Cultivista Brasileiro, o Prêmio Incentivador da Arte e da Cultura,


