Carlos Carvalho Cavalheiro: ‘Saudade do boizinho de Carnaval’
Porto Feliz ainda guarda na memória a tradição dos boizinhos de carnaval. Até pelo menos a década de 1980, talvez até início dos anos 90, os boizinhos ainda eram vistos pela cidade animando as brincadeiras de carnaval.
Nem todas as cidades da região guardam lembranças dessa manifestação. Havia, pelo que se sabe, o boizinho em Itu e Tatuí, além de Porto Feliz. A tradição dos boizinhos de carnaval é antiga e se espalhou por todo o Brasil (os mais famosos são os bumba-meu-boi e boi-bumbá, mas há o boi mamão no sul do país, os bois de reis, etc.). Aparentemente, trata-se de um amálgama de tradições muito antigas que pelo imperativo da constituição diversificada de nosso país, aqui se encontraram esses usos e costumes ganhando roupagens novas.
Há influência africana nessa tradição e também remonta ao simbolismo muito antigo dos bovinos (as religiões antigas sempre apresentam o touro ou o boi como algo sagrado ou relacionado ao divino. Ver, por exemplo, o culto a Dioniso, na Grécia; o Boi Ápis no Egito e o culto ao deus Mitra em Roma). Na Índia, para citar outro exemplo, os bovinos são considerados sagrados até hoje.
Em nossa região do Médio Tietê essa tradição também é antiga e existia, por exemplo, em Itu, onde Francisco Nardy Filho relata como uma tradição ligada aos negros da cidade. Diz o historiador que nas festas de São Benedito e também no carnaval o boizinho tinha a sua participação. Em Porto Feliz, havia um maestro negro, no século XIX, chamado Benedito Pais Arruda (se não me engano) e que levou essa tradição a Tatuí, de onde se originou depois o Cordão dos Bichos, famoso até hoje. Parte disso está relatada no meu livro “O negro em Porto Feliz”.
Em Campinas existe a tradição do “Boi falô”, que ocorre durante a sexta-feira Santa no bairro de Barão Geraldo. De acordo com a lenda local, um escravo da Fazenda Santa Genebra, pertencente ao Barão Geraldo de Rezende, foi instado a colocar a canga num boi para carregar a cana cortada. Quando o escravo, que se chamava Toninho, tentou colocar a canga, diz-se que o boi mugiu e teria dito: “Hoje é dia santo, não se pode trabalhar”.
A Festa do Boi Falô possui um significado religioso, relacionado à ressurreição de Jesus Cristo. Coincidentemente, ou não, as outras tradições do boi também remetem ao ressurgimento, à morte e ressurreição. Com esse sentido o boi era cultuado nos mistérios de Dioniso (ou Dionísio). No bumba-meu-boi, o negro Pai Francisco mata um boi de um fazendeiro para satisfazer o desejo de sua esposa que está grávida e quer comer língua de boi.
O fazendeiro percebe a falta do boi e manda prender o Pai Chico, mas este consegue ressuscitar o boi por meio da intervenção de um benzedor (ou de outro artifício, dependendo da região em que a manifestação ocorra). Assim, ele se livra da punição. O simbolismo da ressurreição é aproveitado com o sentido cristão da ressurreição.
Com menor dramaticidade, o boizinho ituano descrito por Francisco Nardy Filho “pulava, dançava, investia, adoecia, deitava-se; vinha o doutor, curava-o e punha-se ele de novo a pular, a dançar e a investir; e tudo isso acompanhado de cantigas ao som das violas, pandeiros, caixas e zabumbas” (NARDY FILHO, F. A cidade de Itu. Itu:Ottoni, 2000, p. 207).
Em meados da década de 1960, de acordo com Ivan Sampaio, o boizinho do Tedéu. Em 1976 surgiu o Boi do Fervor, de memória mais recente. Em 2004, a Sociedade Recreativa Monções reapresentou o Boi do Fervor.
Os boizinhos de carnaval são uma tradição de Porto Feliz e seria importante que pudessem ressurgir. Como nas lendas ligadas ao boi e ao touro, depois de experimentar a morte temporária, os bois de Porto Feliz poderiam voltar à vida, porque carregam em si muito da mistura de tradições imemoriais, muitas vezes escondidas pela poeira dos tempos. Também porque fazem com que Porto Feliz se destaque em termos de produção cultural tradicional. Possui apelo para a visitação turística, para a difusão do nome da cidade, para a manutenção de uma brincadeira sustentada por conhecimentos que atravessam os séculos.
É o momento de aproveitar os laços que ainda não se romperam: ainda existem pessoas que conhecem a técnica de montagem da armação do boi, assim como estão vivas muitas pessoas que conheceram essa tradição que deixou de existir há poucas décadas. Cabe a nós, portanto, revalorizarmos a manifestação cultural do boizinho.
Carlos Carvalho Cavalheiro – carlosccavalheiro@gmail.com
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Natural de São Paulo (SP, atualmente reside em Sorocaba. É professor de História da rede pública municipal de Porto Feliz (SP). Licenciado em História e em Pedagogia, Bacharel em Teologia e Mestre em Educação (UFSCar, campus Sorocaba). Historiador, escritor, poeta, documentarista e pesquisador de cultura popular paulista. Autor de mais de duas dezenas de livros, dentre os quais se destacam: ‘Folclore em Sorocaba’, ‘Salvadora!’, ‘Scenas da Escravidão, ‘Memória Operária’, ‘André no Céu’, ‘Entre o Sereno e os Teares’ e ‘Vadios e Imorais’. Em fevereiro de 2019, recebeu as seguintes honrarias: Título de Embaixador da Paz e Medalha Guardião da Paz e da Justiça e Medalha Notório Saber Cultural, outorgados pela FEBACLA – Federação dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes e o Título Defensor Perpétuo do Patrimônio e da Memória de Sorocaba, outorgado pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Filosóficos e Históricos. É idealizador e organizador da FLAUS – Feira do Livro dos Autores Sorocabanos