O ‘Capitão Fantástico’ e a educação domiciliar
Cresce o movimento pelo homeschooling ou educação domiciliar, modalidade sem amparo legal no Brasil, mas que ganha adeptos a cada dia e que virou uma das bandeiras do governo federal.
No último dia 11, o presidente Jair Bolsonaro assinou um projeto de lei que visa regulamentar a educação domiciliar no Brasil. Por essa prática, os pais seriam responsáveis pela educação de seus filhos e o Estado fiscalizaria a eficácia desse ensino doméstico.
Já em setembro do ano passado a proposta havia sido rejeitada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), por ser do entendimento da maioria dos ministros da Corte que essa modalidade não encontra escora na Constituição, a qual prevê apenas o ensino público e particular, mas ambos em escolas.
O debate é acirrado e, por vezes, contraditório. No ano de 2016 foi lançado nos EUA o filme ‘Capitão Fantástico’, escrito e dirigido por Matt Ross, e que traz à tona o debate sobre o ensino domiciliar e escolar. O enredo fala de um pai que resolve isolar-se com seus filhos e morar longe da sociedade. No entanto, o pai se responsabiliza pela educação dos filhos, ensinando-os coisas práticas (como caçar, pescar, sobreviver em diversos ambientes…) e teóricas, estas a partir da leitura de livros diversos.
Cada filho era obrigado a ler um livro durante a semana e, ao final, deveria apresentar um resumo crítico do livro, o qual seria discutido com os demais. Assim, o repertório de seus filhos era, de longe, superior ao de qualquer outro estudante de escola pública ou privada.
O filme encantou a muitos adeptos das diversas correntes de esquerda (há citações no filme a Trotsky, a Lênin, a Marx…). No entanto, paradoxalmente, são os que defendem uma posição à direita, no Brasil, os que pugnam pela educação domiciliar.
A justificativa é a de que o ensino escolar está falido, corrompido por ideias esquerdistas, que não respeita a individualidade religiosa. Não se ensina, nas escolas, por exemplo, que a Terra é plana! De fato. O dever da educação é o de fazer a transposição didática do conhecimento socialmente construído. Desde o século XV, pelo menos, a ideia da Terra plana já havia sido enterrada (é por seguir pensamento diverso, ao de que a Terra é uma esfera, que Colombo conseguiu chegar à América).
O problema é que o ensino domiciliar não garante a transposição didática porquanto a qualificação profissional para tanto advém dos cursos superiores de licenciatura. Em suma, a presença do professor dentro do processo de ensino e aprendizagem é essencial.
Ademais, não existe previsão legal em que se possa sustentar a educação domiciliar, tendo em vista que tanto a Constituição Federal quanto a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional preconizam que a educação é dever do Estado e da família. Deixar essa obrigação apenas para a família é tirar do Estado mais uma de suas poucas responsabilidades.
Por outro lado, há uma variedade imensa de escolas confessionais, escolas particulares, escolas de diversos modelos pedagógicos. Não existe outro motivo para a educação domiciliar, a não ser que o problema não seja a escolha de uma instituição em si, mas sim de ordem financeira: a família não tem condições de arcar com os custos de uma mensalidade.
No entanto, se assim for, o custo de uma educação familiar, custeando livros, professores particulares, exigindo tempo dos pais para o acompanhamento da evolução e do rendimento dos estudos dos filhos, tudo isso conjugado sai muito mais caro do que pagar uma mensalidade.
Então, quais são os interesses reais que sustentam a proposta?
Qual o custo disso tudo para o Estado? Afinal, parece que fiscalizar o ensino ministrado nas casas é mais difícil e custoso do que fazê-lo em escolas. A proposta de regulamentar essa prática de educação traz diversas regras que a princípio serviriam de parâmetro para a verificação da qualidade da educação ministrada nos lares. Porém, a mesma proposta de lei não diz como se conseguirá a estrutura para fiscalização do cumprimento das regras impostas.
Por fim, o filme “Capitão Fantástico” deixa a sensação de que esse seria o modelo ideal para a falência da educação. É bom lembrar que o filme traz o contexto dos Estados Unidos. Entretanto, ao final do filme, verifica-se que a qualidade da educação daquela família estava muito mais ligada aos anseios e visão de mundo do pai do que pelo modelo escolhido de educação. Em suma, a educação domiciliar pode funcionar se tudo convergir para isso. Da mesma maneira, a educação pública. Se houver vontade e interesse, certamente a Educação Pública poderá triunfar. Disso depende o cumprimento do preceito legal: dever do Estado e da Família.
Carlos Carvalho Cavalheiro – 23.04.2019
carlosccavalheiro@gmail.com
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Natural de São Paulo (SP, atualmente reside em Sorocaba. É professor de História da rede pública municipal de Porto Feliz (SP). Licenciado em História e em Pedagogia, Bacharel em Teologia e Mestre em Educação (UFSCar, campus Sorocaba). Historiador, escritor, poeta, documentarista e pesquisador de cultura popular paulista. Autor de mais de duas dezenas de livros, dentre os quais se destacam: ‘Folclore em Sorocaba’, ‘Salvadora!’, ‘Scenas da Escravidão, ‘Memória Operária’, ‘André no Céu’, ‘Entre o Sereno e os Teares’ e ‘Vadios e Imorais’. Em fevereiro de 2019, recebeu as seguintes honrarias: Título de Embaixador da Paz e Medalha Guardião da Paz e da Justiça e Medalha Notório Saber Cultural, outorgados pela FEBACLA – Federação dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes e o Título Defensor Perpétuo do Patrimônio e da Memória de Sorocaba, outorgado pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Filosóficos e Históricos. É idealizador e organizador da FLAUS – Feira do Livro dos Autores Sorocabanos