Escola cívico-militar: mais uma afronta aos Educadores
Uma das ações do primeiro ano do atual governo federal foi a instituição do Programa Nacional de Escolas cívico-militares por meio do Decreto nº 10.004, de 5 de setembro de 2019. A finalidade desse programa, de acordo com o artigo 1º do referido decreto, é a de promover a melhoria na qualidade da educação básica no ensino fundamental e no ensino médio. Para tanto, estabeleceu-se uma parceria entre o Ministério da Educação e o da Defesa.
Conforme o material descritivo do portal do MEC (Ministério da Educação), “Os militares atuarão no apoio à gestão escolar e à gestão educacional, enquanto professores e demais profissionais da educação continuarão responsáveis pelo trabalho didático-pedagógico”.[1] Disso decorrem alguns problemas. O primeiro deles é associar a melhoria da qualidade da educação básica a simples presença militar nas escolas. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulgou relatório no dia 8 de setembro mostrando que a remuneração dos professores brasileiros é a pior de todos os outros 38 países membros da organização. “O estudo, que envolveu 38 países membros e outros oito convidados, como o Brasil, faz a comparação calculada em dólares pela paridade do poder de compra. Nesse caso, um docente do ensino médio ganha por ano o que seria equivalente a U$S 25.966, enquanto a média praticada pelos membros da OCDE é de U$S 49.778”, diz publicação a respeito no site Rede Brasil Atual.[2]
Bom, o fato é que não se produz escolas de qualidade com professores mal remunerados. Não fosse somente isso, parte significativa das escolas públicas carece de investimentos em infraestrutura e equipamentos, coisas prometidas na “conversão” da escola tradicional em cívico-militar. Então, o que se vê não é uma melhoria da qualidade a partir da participação de militares na escola, mas sim uma falta de investimento do Poder Público na Educação básica.
Outro problema é que, embora o decreto não traga de forma explícita, o material de divulgação do MEC deixa claro e sem dúvidas que os militares deverão participar da gestão escolar e da gestão educacional. Isso é uma afronta, que fica muito evidente se invertêssemos os papéis: os pedagogos sendo chamados para administrar os quartéis! A ingerência é inaceitável porque se coloca a gestão escolar e educacional nas mãos de quem não tem, a princípio, capacitação técnica e nem competência legal para tanto. Quando se diz da competência legal, recorre-se ao que diz o artigo 64 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: “A formação de profissionais de educação para administração, planejamento, inspeção, supervisão e orientação educacional para a educação básica, será feita em cursos de graduação em pedagogia ou em nível de pós-graduação, a critério da instituição de ensino, garantida, nesta formação, a base comum nacional”.
Em suma, além da ilegalidade flagrante da gestão escolar e educacional nas mãos de “militares” sem a devida qualificação profissional, é também um desrespeito às Equipes Gestoras das escolas, na medida em que se insinua uma suposta deficiência ou incompetência das atuais gestões, déficits estes supridos a partir da presença militar na escola.
Outro problema é definir como responsabilidade dos professores o trabalho didático-pedagógico depois de ter passado por uma orientação educacional militar. Desse modo, o professor torna-se um mero reprodutor de um modelo de ensino, ferindo a sua autonomia (liberdade de cátedra) preconizada no artigo 206, inciso II da Constituição Federal.
É justo que existam escolas militares em maior número que o atual para aqueles que apreciam esse tipo de formação. O que não se pode aceitar é a conversão de uma escola pública em uma escola cívico-militar, pois impede, da mesma forma, o acesso àqueles que não querem uma educação militarizada.
A verdadeira mudança que se pode realizar na Educação é o investimento. Basta ver que “um colégio militar custa, em média, R$ 19 mil por ano, enquanto o da escola pública custa em torno de R$ 6 mil”,[3] ou seja, o que é investido em um aluno da escola militar é mais de três vezes o valor que se investe no estudante de escola pública.
Ao fim, a presença de militares na gestão e na formação dos estudantes de escolas cívico-militares é um desrespeito aos profissionais da educação que participaram de formação em nível superior, tiveram acesso ao serviço público por meio de concurso e cumpriram os requisitos de planos de carreira. E de desrespeito o educador brasileiro já possui uma coleção completa. Não precisa de outro mais.
Carlos Carvalho Cavalheiro
05.10.2020
[1] http://escolacivicomilitar.mec.gov.br/18-o-programa Acesso em 05 out 2020
[2] https://www.redebrasilatual.com.br/educacao/2020/09/media-salarial-professores-brasil-ocde/ Acesso em 05 out 2020.
[3] https://querobolsa.com.br/revista/veja-o-que-e-e-como-funciona-a-escola-civico-militar Acesso em 05 out 2020.
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Natural de São Paulo (SP, atualmente reside em Sorocaba. É professor de História da rede pública municipal de Porto Feliz (SP). Licenciado em História e em Pedagogia, Bacharel em Teologia e Mestre em Educação (UFSCar, campus Sorocaba). Historiador, escritor, poeta, documentarista e pesquisador de cultura popular paulista. Autor de mais de duas dezenas de livros, dentre os quais se destacam: ‘Folclore em Sorocaba’, ‘Salvadora!’, ‘Scenas da Escravidão, ‘Memória Operária’, ‘André no Céu’, ‘Entre o Sereno e os Teares’ e ‘Vadios e Imorais’. Em fevereiro de 2019, recebeu as seguintes honrarias: Título de Embaixador da Paz e Medalha Guardião da Paz e da Justiça e Medalha Notório Saber Cultural, outorgados pela FEBACLA – Federação dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes e o Título Defensor Perpétuo do Patrimônio e da Memória de Sorocaba, outorgado pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Filosóficos e Históricos. É idealizador e organizador da FLAUS – Feira do Livro dos Autores Sorocabanos