Entre uma cerveja e outra no famoso Bar Soberano, um café e um cigarro, discutiam-se roteiros, possibilidade de colaboração, locações, distribuições das fitas e vendas de cotas
É sabido que nas últimas décadas, um pouco do preconceito do grande público quanto ao consumo da produção cinematográfica nacional vem sendo mitigado. Todavia, infelizmente, o leitor poder ter ouvido de algum interlocutor – ou mesmo, com ele ter feito coro de vozes – ressalvas quanto à qualidade das películas brasileiras.
A partir do final dos anos noventa e início dos anos 2000, nosso cinema já contava com investimentos de produção e divulgação interna e no exterior, a nível milionário, muito devido às participações na premiação do Oscar, que solidificaram as carreiras e credibilidade de cineastas como Walter Salles e Fernando Meirelles. Ainda que a meca da indústria, tanto em matéria de produção e audiência tenha se amoldado em torno do mercado norte-americano, o Brasil, no cenário pós-guerra, delineou um público ávido pela sétima arte.
Diferente dos americanos, caracterizados por uma cultura de consumo do próprio cinema, as fitas internacionais sempre tiveram popularidade acentuada em nossas terras, tanto que o histórico de confecção da dublagem nacional é bem precoce em relação aos demais países. Ressalte-se também a versatilidade das realizações nacionais, principalmente a partir dos anos sessenta, gravitando em torno de comédias pastelão, horror, suspenses, dramas e, até mesmo, faroestes. Impossível esquecer dos filmes de Grande Otelo e Oscarito pela produtora carioca Atlântida, e os da Vera Cruz, sediada em São Bernardo do Campo, SP. Um parêntese interessante é que mesmo sem gozar da mesma popularidade no Brasil, o saudoso José Mojica Marins, o “Zé Do Caixão”, recentemente falecido, é extremamente conhecido e cultuado na América e Europa, onde o gênero do horror sempre foi bastante valorizado, de modo acentuado, na Inglaterra, com o lendário estúdio Hammer.
Aliás, um quantitativo considerável de filmes era produzido na chamada “Boca do lixo”, ou Boca do Cinema, na região central de São Paulo, que detinha um histórico de concentração de escritórios das produtoras, principalmente dos anos sessenta aos oitenta, pela proximidade à estação ferroviária da Luz e da antiga rodoviária, quadro que facilitava a distribuição dos rolos de filme. Inúmeros cineastas talentosos enriqueceram esse, que mesmo não chamado de movimento propriamente dito – seria mais adequado rotular de fenômeno – foi um reduto extremamente importante para diretores como Carlos “Carlão” Reichenbach, que concebeu o controverso “Lilian M:ConfissõesAmorosas (Relatório Confidencial)” de 1975 e Rogério Sganzerla, responsável pelo inovador “O Bandido da Luz Vermelha” de 1968.
Paralelamente ao chamado pela histórica de cinema marginal, marcado pelo realismo visceral, nascia o movimento do cinema novo, característico pelo traço de análise das desigualdades brasileiras, numa releitura das peculiaridades afetas a industrialização em contraposição à miséria nas regiões menos favorecidas. Uma fusão de política, regionalismo histórico, religião e folclore bem característicos do Brasil, em uma roupagem intelectualizada de forte inspiração na nouvelle vague francesa, o que Glauber Rocha definiu como “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”.
De outro giro, com recorrentes temáticas eróticas, muitas vezes críticas em seu tom de cinema mais popular e comercial, foi objeto de tolhimento pela censura durante a ditadura militar. O próprio Reichenbach, muito pertinentemente ponderou o contraste do enlatado glamourizado típico do cinema americano e a realidade crua e incisiva dos roteiros da “boca”, no que, indevida e imprecisamente, se convencionou chamar de pornochanchada.
“Chanchada”, consoante apontado em linhas acima, como uma derivação das comédias, inclusive de forte inspiração no cinema italiano que adquiriu, não precipuamente, os contornos da sensualidade. Diante disso, a todos os subgêneros realizados na Rua do Triumpho, atribuía-se pejorativamente o prefixo “porno”, (porno terror, porno policial etc.). O falecido cineasta e jornalista Alfredo Sternheim, um dos últimos reis da boca do lixo, definiu muito bem em entrevistas, que existia uma diversidade para a qual a crítica não se atentava, no famoso “não vi e não gostei”, ponderando, ainda, que os cineastas não contavam com o mecenato generoso da Embrafilme.
Em sua festejada obra “Boca do Lixo – Cinema e Classes Populares”, Nuno Cesar Abreu, (Editora Unicamp), relata:
“A rejeição das elites ao cinema brasileiro (generalizado como pornochanchada) como sintoma de rejeição da realidade. A pornochanchada como pedagogia erótica, trazendo a “revolução sexual” para o universo popular, produzindo o maior fenômeno de bilheteria da história do cinema brasileiro”.
Como decorrência, cuidava-se de um cinema que se autossustentava, no qual os ganhos de um filme eram investidos na produção subsequente, tempo no qual fazer sucesso era lotar uma estreia no Cine Marabá, da Avenida Ipiranga com a São João. Um cinema popular, feito por brasileiros para o brasileiro. Entre uma cerveja e outra no famoso Bar Soberano, um café e um cigarro, discutiam-se roteiros, possibilidade de colaboração, locações, distribuições das fitas e vendas de cotas. Em produções rápidas e sem orçamentos sofisticados, criava-se cinema sem grandes recursos; não amador, mas empregando inúmeros colaboradores amadores que se profissionalizaram na escola do dia a dia, ao lado de figuras já experimentadas. Evidentemente, inúmeros profissionais derivavam da televisão e teatro, contribuindo para uma tendência de filmaking em massa.
Estima-se que grande percentual da produção de cinema nos anos setenta teve origem na boca do lixo, que inclusive foi responsável por grandes sucessos históricos, como “Independência ou Morte”, e “O Pagador de Promessas”, único filme nacional a vencer a Palma de Ouro em Cannes, ambos emergindo do antigo quadrilátero do pecado, formado pelas ruas Aurora, Triumpho e Vitória. Já foi dito que José Mojica Marins era especialista em criar com pouco orçamento ou sem orçamento nenhum, demonstrando, novamente, o tom artesanal das fitas extremamente populares no eixo Rio – São Paulo, que lotavam as salas de cinema, concorrendo até mesmo com os títulos internacionais, traduzindo a realidade numa poética das ruas. Decerto, é uma das características da genialidade, a habilidade de criar com parcos recursos.
As pornochanchadas foram responsáveis por massificar a projeção de atores e diretores como David Cardoso, Sílvio de Abreu, Jean Garrett, Odyr Fraga, Cláudio Cunha, Antônio Ciambra, Alfredo Sternheim, além das musas, Nicole Puzzi, Helena Ramos, Débora Muniz Jussara Calmon, Zilda Mayo, Aldine Müller, Noelle Pine, entre outros nomes que marcaram uma geração. Destacam-se ainda as produtoras de Alfredo Palácios, Antônio Polo Gante e Augusto Cervantes.
É cediço que as posteriores produções de sexo explícito revelaram-se mais intensas no início da década de 80, fazendo com que grande parte do elenco e direção não migrasse para aquele novo estilo, que a partir de então passaram a dominar o quadro de distribuição, minando o jeito de fazer cinema da boca do lixo, intensamente caracterizado nos anos setenta, a partir da liberação de duas décadas de pornografia estrangeira represada. Diante da concorrência, foi o final da Boca. Ainda nas palavras do professor Nuno Cesar Abreu:
“A potente entrada dos filmes estrangeiros de sexo explícito, num momento de esgotamento do modelo da pornochanchada, a desorganização do circuito exibidor, com a saída do distribuidor/exibidor da produção, e a desobediência das leis protecionistas aceleram a rápida decadência do cinema paulista de mercado, abalando os frágeis alicerces da Boca, sobretudo ao provocar divisões internas quanto à adesão ou não à produção de filmes de sexo explícito como forma de sobrevivência”
Apesar de indevidamente criticado, o cinema da Boca foi responsável pela popularização da sétima arte consumida pelos brasileiros, conforme mencionado, ao tratar da realidade e cotidiano, criando uma empatia entre público e elenco, um dos fatores inquestionáveis de seu sucesso, marcando uma segunda fase de procura do público pelo que é tipicamente nacional.
Nas últimas duas décadas, percebe-se um gradual renascimento do interesse do público brasileiro pelas nossas produções, seja a partir da redescobertas de títulos clássicos ou mesmo pelas fitas contemporâneas, que serviram como trampolim para alguns artistas em suas carreiras internacionais. Desse modo, tanto no que tange às grandes produções ou ao ramo independente, quando se escolhe um filme de nossa pátria, boas surpresas se descortinam.
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Nasceu em Cachoeiro de Itapemirim/ES, em 1989. Formado em Direito, é servidor do Poder Judiciário do Estado do Espírito Santo. Autor da obra “Verso e Prosa: Excertos de Acertos”, originalmente publicada em formato físico, coautor em antologias poéticas e de contos. Membro de Academias Literárias, recebeu prêmios e comendas, tais como: “Prêmio Monteiro Lobato”, “Prêmio Cidade de São Pedro da Aldeia de Literatura”, “Grande Prêmio Internacional de Literatura Machado de Assis”, “Medalha Patrono das Letras e das Ciências, Dom Pedro II”, “Medalha Notório Saber Cultura” e foi um dos vencedores do concurso internacional de poesias “Covid Times Poetry” promovido pela ONG “WHD – World Humanitarian Drive”. Foi agraciado com o Título de Doutor Honoris Causa em Literatura, pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Históricos e Filosóficos, com a Comenda Olavo Bilac Príncipe dos Poetas, pela Federação Brasileira dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes (FEBACLA), o título de Cavaleiro Comendador da Ordem de Gotland, pela Soberana Casa Real e Imperial dos Godos de Oriente, dentre outras honrarias. É colunista de cinema e literatura, contribuindo para sites e jornais eletrônicos