COLUNA: PSICANÁLISE E COTIDIANO
Melanie Klein e a dualidade do seio: objeto bom e objeto mau
Melanie Klein nasceu em Viena no ano de 1882. De família pobre, era a quarta filha de um pai que já estava na casa de seus 50 anos. Ele era judeu, estudioso do Talmude (coletânea de livros sagrados dos judeus) e trabalhava como médico clínico geral. Sua mãe abriu um pequeno comércio de animais e plantas exóticas para ajudar no sustento da família. Durante sua vida, Klein sofreu uma sucessão de tragédias e traumas: aos 4 anos perdeu sua irmã Sidonie a quem era muito apegada; talvez ela tenha se tornado médica posteriormente para ajudar seu irmão Emmanuel que sofria de cardiopatia. Ele falece da doença aos 25 anos. Quando tinha 17 anos, ela se casa com o engenheiro químico Artur Stevan Klein e com ele teve 3 filhos: Mellita, Hans e Erich. Em 1934 seu filho Hans falece vítima de um acidente de alpinismo. Sua filha Mellita, que se mostrara uma figura crítica no campo psicanalítico, rompe relações com Klein até o fim de sua vida. Melanie falece em Londres aos 78 anos em 1960 por complicações em função de uma queda enquanto se recuperava de uma cirurgia para tratar um câncer.
Aqui, em breves linhas, sua trajetória na psicanálise começa em Budapeste quando teve contato com os textos de Freud, ficando encantada. Fez análise com Sandór Ferenczi e em 1919 torna-se membra da Sociedade Psicanalítica da Hungria.
Melanie foi a primeira psicanalista a trabalhar com brincadeiras infantis como equivalentes à associação livre na análise com adultos. Ela utilizava brinquedos, pinturas, desenhos e modelagem. Trabalhou com crianças realmente muito novas, com idades entre 18 a 36 meses.
Ao apresentar seu material infantil à Sociedade Psicanalítica de Berlim, ela recebeu muitas críticas ao falar tão abertamente de uma sexualidade e agressividade infantis. A maioria dos analistas antes de Klein, considerava que as crianças não tinham noção de necessidade de ajuda como a consciência que teria um adulto, sendo então impossível fazer uma criança deitar-se no divã e associar livremente. No entanto, a grande genialidade de Klein foi detectar que isto poderia ser descoberto ao observar a criança brincar naturalmente, de maneira livre, sem roteiros ou direcionamentos, bem como teatralizar, contar histórias e se expressar através de jogos e brincadeiras. Assim, ela poderia manifestar suas fantasias, desejos e experiências reais de modo simbólico.
Melanie Klein contribuiu grandemente para o campo psicanalítico, principalmente com relação ao olhar clínico apurado referente às necessidades e demandas das crianças. Em suas principais contribuições originais temos a existência de um ego inato rudimentar, já no recém-nascido, assim como a pulsão de morte que se manifesta através de ataques invejosos e sádico-destrutivos contra o seio da mãe. Essas pulsões provocariam a angustia de aniquilamento, e para lidar com isso, a criança se utiliza de mecanismos primitivos de defesa: negação onipotente, dissociação, identificação projetiva, introjeção e idealização. Não entrarei nestes conceitos em profundidade, apenas citando-os para apresentar as formulações desta brilhante psicanalista.
Klein, ainda ampliou o entendimento de inconsciente, concebendo a mente como um universo de objetos internos que estão relacionados entre si através das fantasias inconscientes, formando uma realidade psíquica. Nestes objetos existem os totais e os parciais, que se constituem em momentos diferentes durante o desenvolvimento da criança. Temos em um primeiro momento a percepção da criança de modo dissociativo, seria a posição esquizoparanóide, na qual ela vê as figuras parentais unicamente “por pedaços”: mamilo, olho, seio, boca, nariz. Já num segundo momento, temos a síntese destes objetos clivados, numa visão de completude das figuras materna e paterna, seria a posição depressiva.
Quanto à noção de posições, que de fato, representa uma enorme importância para a teoria e prática psicanalítica introduzida por Melanie Klein, dizemos que a necessidade da criança em preservar a primeira experiência de satisfação (correspondente ao princípio do prazer de Freud) e rechaçar a dolorosa, leva à primeira dissociação que Klein chamou de splitting. Segundo a psicanalista, toda qualidade de formação do psiquismo gravita em torno da estrutura seio bom e seio mau, ou seja, o mesmo objeto provoca o prazer e a frustração, o amor e o ódio, prazer e desprazer, a dualidade. Os pedaços resultantes das sucessivas dissociações necessitam ser expelidos, assim a “cisão” como um importante mecanismo mental primitivo, ajuda o bebê a ordenar as suas experiências a partir de um caos instintivo.
Na posição depressiva, Klein fala em unificação e numa integração das partes do sujeito que estavam até então dispersas. Nessa posição, a criança reconhece a mãe enquanto objeto total, sendo fundamental para o seu crescimento psíquico, e isto necessita de uma série de capacidades para integrar numa só mãe as dissociações que envolviam o seio bom ou seio mau. Um ponto interessante é que quanto maior for a divisão entre seio bom e mau, na fantasia da criança, mais complexa uma possível psicopatologia poderá se manifestar. Por essa razão, da importância do conceito de posição depressiva, onde este e outros objetos clivados tenderiam a síntese, a unificação.
No período de desmame, por exemplo, a criança precisa conservar, apesar da frustração, uma relação feliz com sua mãe real, que seria preservar mais os aspectos “bons” do que os “maus” para que ela possa estabelecer relações agradáveis com outras pessoas participantes de seu convívio social para além das figuras paterna e materna. Por isso que quando as experiências más predominam sobre as boas, podem surgir psicopatologias, quando então o aparelho perceptual é atacado e o bebê experimenta a realidade afetada carregada de hostilidade que vão ameaçar o seu ego que não estará fortalecido, mas sim, esvaziado.
Uma curiosidade é que à época de Freud, suas teorizações foram consideradas muito “falocêntricas” (falo/pênis/poder/virilidade) enquanto que em Melanie Klein, falava-se em teorizações muito “seiocêntricas” (seio como objeto primordial). Klein em 1957 afirmava que o seio bom amamenta e inicia a relação amorosa com a mãe e representa o instinto de vida, sendo também a primeira manifestação da criatividade. Seria uma porta de entrada fundamental para o mundo.
Mesmo tendo vivenciado tantas dificuldades com sua família e ter passado por sucessivos períodos de luto, Melanie Klein nos deixou um belíssimo legado não só para o campo da medicina e da psicanálise, como também enquanto figura feminina que estava à frente de seu tempo, enfrentando muito julgamentos e embates envolvendo suas teorias. Uma célebre frase de Klein que ficou marcada por gerações diz: “Quem come do fruto do conhecimento é sempre expulso de algum paraíso”.
Pois é, de paraísos seguros, talvez já estejamos cansados. Embora o aconchego de permanecer em nossas zonas confortáveis seja tentador, aprendemos com Melanie Klein que vencer as batalhas e os desafios que a vida nos coloca é, sem dúvida, uma tarefa árdua, porém possível e extremamente gratificante.
Bruna Rosalem
Psicanalista Clínica
@psicanalistabrunarosalem
www.psicanaliseecotidiano.com.br
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Psicanalista e professora. Natural de Campinas/SP, porém, atualmente reside em Balneário Camboriú/SC. Seu percurso na psicanálise começou na época do Mestrado, participando de dois grupos de estudo em Educação, Ciência e Psicanálise: Grupo PHALA (UNICAMP) e Grupo Universal (USP), desde então segue os estudos na Associação Psicanalítica de Itajaí, onde atua como professora. É mestra em Educação e Práticas Culturais (Unicamp) e Pós-graduada em Filosofia, Psicanálise e Cultura (PUC/PR). Realiza atendimentos e supervisão. Escreve para o Jornal Cultural ROL as colunas Psicanálise & Cotidiano, Cinema & Psicanálise e Crime & Psicanálise, sendo estas últimas em parceria com o escritor Marcus Hemerly. Também participa de Antologias, escrevendo contos e crônicas.