COLUNA PSICANÁLISE E COTIDIANO
Cegos pelo fanatismo no longa O Milagre (2022)
Anna O´Donnell apresenta um comportamento, no mínimo, estranho: faz quatro meses que não se alimenta, mesmo assim continua apresentando ótimas condições de saúde, sem alterações. Nada de magreza ou fraqueza. Pele brilhante, rosto corado, cheia de energia. Menina devota, faz todos os dias suas orações, recita versos da Bíblia, canta sempre muito alegre. Sua família fica cada vez mais perplexa com a condição da garota. Anna diz que se alimenta apenas de ‘Maná do Céu’. Estaríamos diante de um verdadeiro milagre? Do possível surgimento de uma santa?
O ano é 1862, estamos num cenário bucólico em alguma vila remota da Irlanda. A enfermeira inglesa Lib Wright é contratada junto a uma freira para vigiar constantemente Anna durante quinze dias. Depois desse período de vigilância, deve apresentar a uma comissão da região um relatório sobre o estado de saúde da menina e as possíveis razões que a mantém numa condição estável mesmo sem alimentação.
Enquanto Lib fazia sua vigília, trocando turnos com a freira, realizava alguns exames possíveis na menina como medições, observações no corpo, pulsação, anotando todos os resultados e possíveis variações no peso e nas batidas do coração.
A enfermeira observava constantes visitas de peregrinos, turistas, familiares à menina, que sobrevivia sem comida. Começava a se tornar praticamente uma atração turística que rendia contribuições em dinheiro para a família. Neste ínterim, Lib percebeu algo estranho: toda noite, antes de dormir, a mãe da menina sussurrava algo em seu ouvido e depois a beijava, levando certo tempo. Parecia que havia algo mais naquela atitude.
Como o transcorrer da narrativa, vemos que Lib rememora um passado muito doloroso: depois de perder seu bebê com poucas semanas de vida, seu marido a abandona. Ela guarda consigo os sapatinhos feitos de pano de seu filho junto a uma garrafa, e toda noite faz uma espécie de ritual: imersa em seus delírios, memórias e devaneios, cheira os sapatinhos e depois ingere um líquido parecido com mel. Há certos momentos em que ela também priva-se de se alimentar, apenas engole o tal líquido. Outros momentos, se esbalda comendo exageradamente.
De alguma maneira, Lib sente que precisa não só estar ali cumprindo seu contrato de vigília, como também tem a missão de salvar a garota. Cética como é, não consegue acreditar que realmente Anna possui uma santidade, algo de sobrenatural. Gradativamente, passa a investigar a família de sua paciente para tentar descobrir o quanto a presença deles tem relação com a condição que ela apresenta.
A enfermeira, então, toma uma decisão radical: proíbe qualquer pessoa, exceto ela e a freira, de chegar perto de Anna. Acontece que depois deste fato, sabiamente, Lib comprova sua hipótese: o ‘Maná do Céu’ que Anna dizia que se alimentava, era na verdade comida que a mãe passava para os seus lábios naquele ato de beijá-la. Como um pássaro alimentando sua cria. Por isso a menina continuava viva aos olhos das pessoas, sem terem a menor ideia de que estava sendo alimentada.
Em poucos dias, afastada da família, a menina adoece severamente.
Lib conta a história a um jornalista da cidade, pois de nada adiantou dizer a verdade à comissão da região que insistia que a menina poderia ser santificada, afinal, fazia muitos anos que aquele lugar precisava de um santo. Mesmo Anna visivelmente fraca, sem forças para caminhar e com dificuldades para respirar, os moradores da vila e sua própria família permaneciam firmes em seus propósitos religiosos.
Desesperada, Lib pressiona a menina, suplicando as razões pelas quais Anna permanecia incorporando esta personagem que a torturava dia após dia, recusando-se enfaticamente a se alimentar. Ela estava morrendo aos poucos. Duraria algumas semanas e, mesmo assim, relutava.
Até que depois de muito insistir, a garota revela algo estarrecedor: quando tinha nove anos, seu irmão mais velho – morto em circunstâncias obscuras, algo que o filme nos deixa em dúvidas quanto ao seu paradeiro – por diversas vezes comete abuso. Dizia ele que seu amor por ela era eterno, era sua amada, a prometida. A família descobre o fato, afasta o irmão do convívio familiar, e Anna, agora impura, entregue ao pecado, precisa ser novamente purificada, escapar da condenação ao Inferno e resgatar a sua ida ao Reino do Céus. Prestes a morrer por inanição, nem com Lib implorando à mãe que voltasse a alimentar a filha escondida dos moradores e das autoridades da igreja, a família decide que somente assim Anna seria perdoada. E mais: a vila finalmente canonizaria sua tão aguardada santa.
Inconformada com este desfecho nauseante, perturbador e inaceitável as suas convicções como mãe que um dia havia sido e, mais além, como ser humano que anseia pela vida, Lib não vê outra saída do que fugir com a menina. Antes, aproveitando que a família estava na igreja assistindo ao culto, trata de queimar a casa e também seus pertences, incluindo os sapatinhos de seu falecido bebê e a garrafa. Tudo virou um mar de cinzas, nada além de pó.
Um final para um grande recomeço.
Lib, Anna e o jornalista rumam para bem longe dali.
Talvez, se existe algum milagre nesta história, é possível dizer que a menina renasceu numa nova família, com toda vida pela frente, cheia de sonhos e realizações. Bem distante de seu destino até então selado pela cegueira, pela vaidade, pelo egoísmo de pessoas que viam nela apenas vantagens, mesmo que custasse acabar com sua existência neste mundo. E quanto mais seu fim fosse trágico, mais enaltecimento e reconhecimento seus familiares teriam. Mais evidência para a cidade, mais clamor, mais fama.
Mentiras reconfortantes às custas do sacrifício de uma inocente.
Graças à Lib, o verdadeiro milagre aconteceu: a beleza de vivenciar uma nova história.
Bruna Rosalem
Psicanalista Clínica
@psicanalistabrunarosalem
www.psicanaliseecotidiano.com.br
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Psicanalista e professora. Natural de Campinas/SP, porém, atualmente reside em Balneário Camboriú/SC. Seu percurso na psicanálise começou na época do Mestrado, participando de dois grupos de estudo em Educação, Ciência e Psicanálise: Grupo PHALA (UNICAMP) e Grupo Universal (USP), desde então segue os estudos na Associação Psicanalítica de Itajaí, onde atua como professora. É mestra em Educação e Práticas Culturais (Unicamp) e Pós-graduada em Filosofia, Psicanálise e Cultura (PUC/PR). Realiza atendimentos e supervisão. Escreve para o Jornal Cultural ROL as colunas Psicanálise & Cotidiano, Cinema & Psicanálise e Crime & Psicanálise, sendo estas últimas em parceria com o escritor Marcus Hemerly. Também participa de Antologias, escrevendo contos e crônicas.