COLUNA PSICANÁLISE E COTIDIANO
Boate Kiss: a tragédia que completa 10 anos com muita dor e sem respostas
Este ano de 2023, todo o Brasil, especialmente a cidade de Santa Maria no Rio Grande do Sul, relembra após dez anos, uma das maiores tragédias de nossa história: a morte de centenas de jovens ocorrida na fatídica noite de 27 de janeiro de 2013 na boate Kiss.
O que era para ser uma festa com muita diversão, música boa, descontração, até mesmo um descanso para a maioria daqueles estudantes universitários atarefados com as demandas de seus cursos, transformou-se na pior noite de suas vidas.
Familiares das vítimas que faleceram e os sobreviventes até hoje sofrem com as perdas e os traumas que deixaram marcas irreversíveis em seus corpos e mentes, modificando de vez seu cotidiano. Depois da tragédia, não só tiveram que reunir forças para enterrar seus entes queridos, como também organizar novas maneiras de viver com as sequelas das queimaduras, dos gases tóxicos inalados, além de longos períodos de reabilitação para voltar a caminhar, a exemplo de uma garota que perdeu parte de sua perna e de um rapaz que teve grande parte do corpo queimado.
Na verdade, a batalha estava apenas começando. Laudos técnicos das equipes da Política Civil e do Corpo de Bombeiros apontavam que aquele lugar apresentava inúmeras irregularidades quanto ao funcionamento do espaço, portas de emergência insuficientes, dificuldades para, numa emergência, evacuar o local; e o mais grave de tudo, a espuma que revestia o teto da boate era extremamente tóxica e altamente inflamável. Segundo autoridades, jamais aquele material poderia ter sido utilizado em lugares fechados. Inacreditáveis sucessões de erros e negligências.
Naquela noite, a banda de músicos contratada para tocar e divertir o pessoal, em um dado momento, utilizou uma espécie de fogos de artifício para compor seu show. Bastaram apenas alguns minutos para o teto pegar fogo e as chamas se alastrarem rapidamente. Demorou mais alguns minutos para que todos aqueles jovens percebessem a gravidade da situação.
Neste panorama assustador, dois fatores foram culminantes para que a tragédia da boate Kiss ganhasse contornos ainda mais perturbadores: a toxidade da espuma e o impedimento de saída por parte dos seguranças. Os gases venenosos não só vitimaram os jovens dentro do local como também momentos depois que muitos deles conseguiram sair de lá, ou seja, mesmo em meio ao caos e ao desespero que só aumentava, tornando a situação mais agoniante, quem conseguia escapar, acabava morrendo por intoxicação na calçada ou a caminho do hospital. Somado a isso, a hiper lotação daquela noite junto ao fechamento das portas pelos seguranças a mando dos donos que só permitiriam a saída mediante pagamento da comanda. Certamente, configurava-se assim, um cenário infernal e difícil de imaginar tamanha angústia daquelas pessoas que buscavam a todo custo salvar suas vidas.
Ao todo, 242 almas perdidas e mais de 600 feridos. Números alarmantes, incompreensíveis para todos que acompanhavam diariamente o desfecho desta história e que até os dias atuais está pendente. Os réus chegaram a ser condenados no ano de 2021, porém o júri foi anulado pela 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) após aceitar os recursos apresentados pelas defesas. Ou seja, não há ninguém condenado por essa tragédia, ninguém pagando sua sentença, nenhuma das famílias das vítimas sentindo ao menos algum senso de justiça. Uma espera que não tem fim. Tormento e tristeza que nos é impossível expressar em palavras.
A jornalista e escritora, vencedora do Prêmio Jabuti, Daniela Arbex, reconstruiu de maneira sensível e brilhante, os acontecimentos daquela noite e seus desdobramentos no livro “ Todo dia a mesma noite: a história não contada da boate Kiss”, narrativa esta que inspirou a mais recente minissérie de mesmo nome na plataforma de streaming Netflix. Ambas histórias contadas tanto pela via escrita quanto encenada são ótimas referencias para conhecermos mais a fundo este evento marcante.
Ficamos, enquanto seres humanos que sofrem, choram e sentem dor, aguardando por algum desenrolar desta trama cruel. Que nos traga ao mesmo um singelo acalento para os nossos corações que continuam a bater junto com as famílias na esperança de justiça e por dias melhores. A vida continua. Não podemos parar.
Força para quem fica. Paz para quem já se foi.
Bruna Rosalem
Psicanalista Clínica
@psicanalistabrunarosalem
www.psicanaliseecotidiano.com.br
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Psicanalista e professora. Natural de Campinas/SP, porém, atualmente reside em Balneário Camboriú/SC. Seu percurso na psicanálise começou na época do Mestrado, participando de dois grupos de estudo em Educação, Ciência e Psicanálise: Grupo PHALA (UNICAMP) e Grupo Universal (USP), desde então segue os estudos na Associação Psicanalítica de Itajaí, onde atua como professora. É mestra em Educação e Práticas Culturais (Unicamp) e Pós-graduada em Filosofia, Psicanálise e Cultura (PUC/PR). Realiza atendimentos e supervisão. Escreve para o Jornal Cultural ROL as colunas Psicanálise & Cotidiano, Cinema & Psicanálise e Crime & Psicanálise, sendo estas últimas em parceria com o escritor Marcus Hemerly. Também participa de Antologias, escrevendo contos e crônicas.