Ella Dominici: Conto ‘Desatinado em vida animália’
O matuto é sedento de paixão desde os dias onde via os animais que se acasalavam.
Certas pessoas imaginam os animais e gentes; criativos inventam como eles pensam, e como os pensamentos deles falam mais que os seus, ouvem as falas em farras, disputas, filmes e romances. Sabendo que até a literatura apresenta estudos, teses, debates sobre livros de escritores renomados que representaram vasta animália ao inconsciente humano.
O menino perdeu o pai aos 6 anos, parece um ‘causo’ mas na verdade foi um caos em plena mata, nas terras vermelhas e rachadas da área rural mineira. O cunhado comprou o vaqueiro do Joãozinho Tatu, que por sua vez era seu capanga.
Embebedado foi, com a ambição de colecionar mais e mais poeira.
Vingou-se das ameaças tolas do João, a respeito da ‘divisa’ das terras que pertencia às duas irmãs, suas esposas, que eram as herdeiras legítimas da fazenda do ribeirão Santa Rita.
O pai de Solon foi vitimado em um envenenamento da água do cantil do ‘pau mandado’, o capanga do Fulano. Sucumbiu à cabeceira do córrego do rio Tejuco. Sete dias passados foi achado ali, João Tatu povoado por formigas.
Solon se lembrava que antes do pai sair, pediu-lhe a bênção.O abençoou paternalmente, à moda caipira, com imposição das mãos em sua cabeça.Não se sabe se desde este dia, ou desde a falta tanta do jovem pai João, o menino ficou aluado, endoidando consideravelmente.
Desde então entrou num silêncio aloprado.
Às vezes se calava e brincava sozinho ou brigava com tudo e todos numa agitação onde não se entendia sua fala incógnita.Tímido, seu refúgio preferido era o chiqueiro ou o campo, onde o gado solto se evadia lentamente.
O namoro dos bichos era fenomenal, curioso e muito legal. Se apaixonou pelas fêmeas inacessíveis, dóceis novilhas, leitoas rosadas, galos e as muitas galinhas, as éguas… como eram lindas e ágeis, como as desejava. Iniciava ali uma trajetória ao amor impossível .Como ele, um moleque franzino e triste, competiria com machos inteiros? Logo descobrira as fêmeas de sua espécie, a humana, as meninas da escola, filhas dos vizinhos fazendeiros ou dos vaqueiros, primas e caseiras, e a visão de alguma se banhando era a ilusão mais esperada ao menino do campo.
Em casa se lavava na espera de ficar lindo e cheiroso, algo habitual e repetitivo, lavava mãos, braços e rosto sem parar e olhava no espelho do lago, ou das panelas d’alumínio que areadas lumiavam seu rosto e cabelo, no girau do terreiro.
Passados anos, Solon tinha evoluído na escola da roça, que distava 6 km da casa da fazenda. Ele sempre teve raciocínios para aritméticas história e geografia, nenhum dos alunos aprendia o português do professor que mal o traduzia para a língua dos matutos, difícil esse trem de falar certo igual aos da Capital.
Imaginem que daqueles rudes ensinos, se formaram três dentistas, dois médicos, quatro engenheiros, bióloga, farmacêutico, agrônomo e um veterinário prático, que vacinava, castrava os animais.Outros não formados seriam os que continuariam nas terras mineiras.
Dos anos passados, se lembra dos casamentos dos irmãos, o caçula foi o primeiro a engravidar a coroa, com quem se casou pois gente de bem assumia o que fazia, senão o reio da mãe, voz imponente de viúva, se mostrava em filho, mesmo adulto.
Em seguida o irmão estudado se casou com uma paulistinha cocota e bonitinha. Depois o terceiro mano também escolheu uma mineira agitada e de boas risadas.As mulheres suas irmãs, solteironas por enquanto.
Solon era solitário, macambúzio em disfarçada-vida, aliviado pelas idas e vindas à cidade, nariz do triângulo, onde observava as moças que circulavam e delas desejava roubar um beijo, abraço, e o algo mais, que o pudesse desabitar de sua castidade.
Nas lojas de roupas, lojistas ou balconistas a escolherem para ele camisa de cambraia e calça de linho para causar boa impressão. O nada e ninguém o levava às concessionárias, onde se arriscava num consórcio de moto para poder levar as divas mineiras na garupa.
A ilusão-realidade era um amálgama condensado aos sonhos. Aos setenta anos, ainda na roça, Solon vai e volta todos os dias da cidade, onde presenteia a namoradinha de dezoito, aliás, lindinha como as esposas de seus irmãos,( hoje já senhoras), ela, o bicho perigoso que pretendia se apossar do testamento.
Solon o solitário, ludibriado por celulares novos, motos e capacetes, acreditando sem alguma lucidez, no amor tardio.
Não pode morrer assim, pensa, sem nunca ter se deitado com uma mulher bonita…
Nesta rítmica sensação das mãos do pai sobre si, lava a cabeça na torneira da pia da cozinha, enxágua as mãos na aguada do Córrego do Quebra Dente, junto ao gado nelore, branco tal sua consciência. Mergulha e nada no Tejuco sem bem saber nadar.
Querer se casar fora sua mais pura e obcecada necessidade. A animália mantivera sua lembrança mineira calma e genuína, em meio à agitação de mentecaptas paixões.
Ella Dominici
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Natural de São Paulo (SP), é endodontista por profissão e formada no curso superior de Língua e literatura francesa. Uma profissional que optou por uma ciência da área da saúde, mas que desde a infância se mostrava questionadora e talentosa na Arte da Escrita, suscitando da parte de um mestre visionário a afirmação de ela ser uma escritora nata, que deveria valorizar o dom que recebera. Atendendo ao conselho recebido, na maturidade Ella cumpre o vaticínio e lança o primeiro livro solo de poemas (Mar Germinal), rompendo com a escrita meramente contemplativa, abraçando fragmentos, incertezas e dualidades para escancarar oportunidades a si como ao outro. Dribla o autoritário tempo, flagra mazelas psicológicas em minúsculas e múltiplas impressões exteriores e internas. É membro da AMCL – Academia Mundial de Cultura e Acadêmica Internacional da FEBACLA. Coautora de várias antologias. Publica na Revista Internacional The Bard e se inscreveu no 8º Festival de Poetas de Lisboa, participando da antologia promovida pelo evento
Texto maravilhoso, amiga. Parabéns!!