Elaine dos Santos:
Artigo ‘Por um mundo melhor: precisamos nos cuidar’
O trágico fim de Bertoleza no romance ‘O cortiço‘, de Aluísio de Azevedo, sempre me pareceu um exemplo clássico de que confiança, fidelidade, lealdade e outros atributos morais ligados ao respeito não costumam ser respondidos da mesma forma.
Na concepção de João Romão, que a usou ao longo de todo o romance, Bertoleza era, de fato e de direito, apenas uma serviçal que permitiria alcançar os objetivos dele.
Aliás, em uma turma de segunda série de ensino médio, já faz alguns anos, um ex-aluno me disse: “Mas, neste romance, somente os brancos se dão bem”. Depois de longos anos de trabalho docente, um menino na faixa de 15 anos olhava para a explicação que eu havia posto no quadro e identificava a segregação racial existente no Brasil naquele final do século XIX, quando o romance fora publicado.
Como se sabe (ou deveria saber), a chamada Escola do Recife, que reunia estudiosos como Nina Rodrigues e Sílvio Romero, entre outras instituições, defendia o branqueamento da ‘raça’ brasileira, atribuindo ao negro e ao indígena todas as mazelas dos caracteres tidos como nacionais.
De qualquer forma, Bertoleza era um ‘burro de carga’ usado por João Romão para carregar, inclusive, furtos que ele fazia na calada da noite. Miranda, o outro português que aparece na narrativa, embora fosse recorrentemente traído por sua mulher, Estela, nunca se separou dela e nem dos recursos financeiros da esposa. Mas Jerônimo, o terceiro português, após separar-se de sua mulher branca, envolveu-se com uma mestiça, esteve preso. Desenhava-se, na narrativa de ‘O cortiço’, o nada vencedor para quem tivesse contato com os “elementos impuros” da gente brasileira.
Ainda assim, a minha reflexão aqui segue em outra linha: a falta de respeito, de consideração ao elemento humano: preta ou branca, Bertoleza confiou e foi fiel a João Romão. Confiou-lhe o direito poupado para adquirir a carta de alforria e ele gastou em outros interesses; manteve-se como esposa e trabalhadora fiel, trabalhando de sol a sol para obter os bens necessários para ambos. Foi sua companheira.
Já faz alguns anos, em um casebre na Grande Porto Alegre, um homem manteve a mulher e o filho sob cárcere privado, era um menino e deveria ter entre 3 e 4 anos. Foram horas de negociação. No clarear do dia, ele liberou o filho, matou a mulher e suicidou-se. Na minha memória, permanece aquela imagem da casa fechada, alguns brinquedos espalhados pelo chão.
Mais recentemente, numa época de festejos de final de ano, um marido matou a mulher, uma juíza, diante das filhas, em praça pública. Lembro que, ao lado da foto dela, coloquei fotos de outras tantas mulheres mortas por seus maridos e companheiros.
Não se viola, na maioria dos casos, o amor, o respeito, a (in) fidelidade, a confiança, o companheirismo, a vida privada entre marido e mulher, rouba-se a paz dos filhos, o heroísmo que pais representam para filhos. Como confiar em outras pessoas? Como acreditar ‘em boas intenções’?
Bertoleza, limpando os peixes, em ‘O cortiço’ associa-se ao menino que viu a mãe ser mantida em cárcere privado, que foi submetido à tensão e ao medo e que, ao final, não tinha mais mãe, não tinha mais pai.
Não é aqui uma teoria apocalíptica, afinal, tenho 60 anos e não tive filhos. Mas é olhar para trás e lembrar Margareth Mead, que, quando questionada, sobre o fato que transformou a humanidade em sociedade, afirmou que foi o achado de um fêmur quebrado. Aquele achado demonstrava que alguém parou para cuidar de outro ser ferido, para que, juntos, pudessem retomar a caminhada. Parece-me, por vezes, que a necessidade de cuidar precisa ser reaprendida e não apenas a violência precisa ser superada, mas a omissão, a falsidade, a enganação.
Que Deus nos abençoe e cuide neste 2024.
Elaine dos Santos
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Natural de Restinga Seca (RS), é licenciada em Letras, Mestre e Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Tem formação em espanhol pela Universidad de La Republica, Montevidéu. Possui 29 artigos acadêmicos publicados em revistas nacionais na área de Letras com classificação Qualis, além de participação em eventos com trabalhos completos e resumos. É autora do livro Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro mambembe, adaptação de sua tese de doutorado, e coautora em outros livros versando sobre Direito, História, Educação e Letras. É revisora de textos acadêmicos, cronista com textos publicados em jornais regionais e estaduais e participação em mais de 80 antologias.