Sergio Diniz da Costa: Crônica ‘A sinfonia da vida’
Depois de 35 anos de trabalho, aposentei-me. Sem compromissos profissionais, passei a me dedicar apenas ao que gosto de fazer, em particular, escrever!
De vez em quando, contudo, me percebo lembrando os anos passados quando, durante um tempo, em trabalho subordinado, obedecia a horário rígido durante os dias úteis da semana, e mesmo em muitos finais de semana, trabalhando em jornada extraordinária.
Por causa desse regime de trabalho e, em seguida, ainda somando o curso de Direito à noite, praticamente não pude acompanhar os primeiros anos de vida das minhas duas filhas.
Foram anos muito difíceis, até porque, além de uma carga de trabalho muito superior à de lazer junto da família, convivia com pessoas que não correspondiam a alguns dos meus anseios, voltados à literatura e às artes.
Decorrente dessas mazelas, muitas vezes, na rotina diária, lembrava-me de um poema, de autoria de James Kavanaugh (1918-2009), um padre norte-americano, autor de 26 livros sobre temas como Filosofia, Psicologia, Teologia, ficção e poesia.
O poema, ‘Algum dia’, era-me uma inspiração, ainda que parecesse inalcançável o momento em que o vivenciaria, se realmente possível fosse fazê-lo: “Algum dia vou sair andando/ E serei livre/ E deixarei as pessoas estéreis/Com sua segura esterilidade/ Partirei sem deixar novo endereço/ E atravessarei alguma selva desolada/ Na qual deixarei ficar o mundo/ Depois sairia andando livre de cuidados/ Como um Atlas desempregado”.
O poema era (e é!) uma Ode à Liberdade!
Atravessar uma selva desolada, na qual deixaria todas as preocupações do mundo e sair andando “livre de cuidados/ Como um Atlas desempregado”!
Um Atlas desempregado! O titã Atlas que, por ter se insurgido contra Zeus dele recebeu, como castigo, sustentar para sempre nos ombros o céu. Ou o mundo, como comumente é representado nas gravuras.
Aposentado, portanto, não tinha mais que sustentar o mundo nos ombros. Resolvi, então, atravessar alguma selva desolada, e lá deixar o mundo, para andar livre de cuidados, apenas observando e sentindo a natureza.
E lá vou eu! Logo pela manhã, cedinho, acordo com o barulhento taramelar de um casal de maritacas que, diariamente, pousadas numa árvore em frente do meu prédio, vêm despertar todos os condôminos (muito a contragosto da maioria, diga-se de passagem).
Após a higiene inicial, apenas um gole de água e despeço-me da minha esposa, com um beijo estalado. Abro minha porta, a qual, desta vez, para minha surpresa, não rangeu.
Ouço, então, como sempre, o papagaio madrugador do apartamento de frente, palreando uma mistura de Inglês e Francês (o dono é um estudante de línguas), bem como cantando a primeira estrofe do Hino Nacional Brasileiro. Ele fala e canta tão alto que o cãozinho do outro apartamento ladra sem parar. Mal dá para ouvir o miado do gato do apartamento ao lado, pedindo o leite matinal. Bem audível, porém, o dono dele, maldizendo o papagaio e o cãozinho.
Perturbações à parte, desço as escadas correndo, sibilando como uma flecha.
Já na calçada ouço, vindo de uma casa no final do quarteirão, uma araponga bigorneando. “Ninguém merece!” ─ eu penso, irritado. E, para espairecer, detenho-me no som do vento matinal. Ele sopra e, num dos apartamentos, faz drapejar uma bandeira desbotada, ali colocada há um século.
E o mesmo vento traz o estridular de um bem-te-vi e o fonfonar da buzina de um carro que, por pouco, não atropela uma senhora idosa, descuidadamente atravessando a rua.
Entre a harmonia e o susto, penso apertar o passo, em busca da minha selva desolada.
A modernidade, no entanto, praticamente excluiu as grandes áreas verdes da minha cidade e deram lugar a uma infinidade de prédios que, brotando de todos os lados, têm me tirado os horizontes.
Sem a selva, desolado sinto-me eu. E me detenho.
Neste momento, resta-me tão somente sonhar que a visão de um beija-flor trissando nos ares me leva por um caminho com árvores em verdes colóquios farfalhantes, à margem de um riacho murmurante, até a entrada de uma mata virgem.
Ao entrar, o pio de uma coruja parece um aviso, mas o gorjear de uma cotovia, um convite.
Já anoitecera e o céu negro se acendeu com miríades de pirilampos. Na terra, cigarras em coro começaram a ciciar.
Uma mata virgem, uma verdadeira selva, mas não desolada. Exuberante de sons, de aromas e de cores.
Embrenho-me nela, e nela deixo o meu mundo. E, já acordando do sonho, sinto que dela parti livre, como um Atlas desempregado!
Um detalhe, apenas: quando saí de casa, deixei meu endereço, pois vai que numa dessas você, caro leitor, também queira sair livre por aí, para atravessar alguma selva desolada e deixar seu mundo lá.
Nesse caso, se e quando assim decidir, me dê um alô. E vamos sair juntos, como dois Atlas desempregados. Ouvindo e sentindo… a sinfonia da vida!
Sergio Diniz da Costa
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Natural de Sorocaba (SP), é escritor, poeta, revisor de livros e Editor-Chefe do Jornal Cultural ROL. Acadêmico Benemérito e Efetivo da FEBACLA; membro fundador da Academia de Letras de São Pedro da Aldeia – ALSPA e do Núcleo Artístico e Literário de Luanda – Angola e membro da Academia dos Intelectuais e Escritores do Brasil – AIEB. Autor de 8 livros. Jurado de concursos literários. Recebeu, dentre várias honrarias: pelo Supremo Consistório Internacional dos Embaixadores da Paz, o título Embaixador da Paz e Medalha Guardião da Paz e da Justiça; pela Augustíssima e Soberana Casa Real e Imperial dos Godos de Oriente o título de Conde; pela Soberana Ordem da Coroa de Gotland, o título de Cavaleiro Comendador; pela Real Ordem dos Cavaleiros Sarmathianos, o título de Benfeitor das Ciências, Letras e Artes; pela FEBACLA: Medalha Notório Saber Cultural, Comenda Láurea Acadêmica Qualidade de Ouro, Comenda Ativista da Cultura Nacional; Comenda Baluarte da Literatura Nacional e Chanceler da Cultura Nacional; pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Filosóficos e Históricos os títulos de Doutor Honoris Causa em Literatura, Ciências Sociais e Comunicação Social. Prêmio Cidadão de Ouro 2024
Que texto portentoso, meu nobre amigo!
Lendo-o, segui a vaguear buscando também encontrar essa selva de exuberantes sons e que exala vida e liberdade.
Gratíssimo por seu comentário, nobilíssimo JAT!
Estar aposentado é mesmo uma sensação de liberdade. Principalmente realizando o trabalho que realizo no Jornal ROL, divulgando a cultura e, como a maior recompensa, ter novos amigos, feitos você, meu irmão!
O tempo, o trabalho árduo, a dedicação excessiva e exclusiva, e o perfeccionismo são marcas para desempregar o Atlas.
Há tempo para tudo nessa andança terrena, tempo para empregar e tempo para desempregar o Atlas.
Amigo Sérgio, desfrute desta fase!
Gratíssimo por seu comentário, Osvaldo!
Ser um Atlas aposentado é, para mim, uma sensação inebriante de liberdade. Em especial, para fazer algo que gosto, que preenche minha vida, com a certeza de estar contribuindo para a disseminação da cultura!
E, como um plus, conhecer amigos e irmãos de outras cidades e estados brasileiros, bem como de outros países, feitos você e todos seus conterrâneos!