Marta Oliveri: Conto ‘A sereia sem voz’


às 12:35 PM
Breve Prefácio:
Em um mundo onde a voz é um elemento fundamental, uma sereia sem voz embarca em uma jornada de autodescoberta e busca por sua própria identidade nas profundezas de um oceano de sombras.
Era uma vez uma sereia sem voz em uma cidade submersa. Um feitiço lançado por algum Daimon de outros tempos, talvez de todos os tempos, mutilou seu canto e, em seguida, suas palavras. Quem sabe? Essas coisas acontecem por um motivo, o que não significa que seja de forma alguma razoável.
Na cidade de sua infância, ela sonhara que era uma menina correndo pelas margens de um oceano sem fim sob o sol do amanhecer que inaugurava sua vida. Imaginou que a pequena sereia devia ser assim, já que não é de forma alguma admissível que uma criatura de luz sofra sob um mar de névoas em uma cidade de silêncio, visto que ali só habita o silêncio. Na verdade, talvez ela fosse o único ser vivo naquele lugar onde se construía a geografia dos túmulos. Tudo naquela cidade se tornara um túmulo; as praças marinhas estavam vazias, as árvores-estrelas murchavam, o prado de algas dançantes não dançava mais; haviam sido levadas pela melancolia até serem completamente consumidas, agora, apenas uma geada negra. Os corais, por sua vez, apesar de sua natureza resiliente, haviam perdido suas cores, e o parque de corais que outrora devia ter sido o orgulho de algum rei do mar, parecia mais do que um parque, um cemitério; frágeis esqueletos de corais eram tudo o que restava.
Talvez fosse por isso que a pequena sereia imaginava, sonhava com sua infância. Talvez fosse por isso que seu canto permanecera em algum lugar insuspeito. Sim, ela se lembrava, isto é, imaginava ter cantado um dia, como todas as sereias, ou aquelas que sonham ser como tal, fazem. Ela passava seus dias e noites assim, supunha, pois na cidade submersa, dia e noite eram a mesma coisa.
Nada sugeria que o sol nasceria.
Nada sugeria que a lua e as estrelas estenderiam seu manto sobre ela. A névoa daquele oceano era tão áspera que cobria tudo. E a pequena sereia sonhava e pensava, ocasionalmente falando com alguma concha de lembrança, ou com o esqueleto de um cavalo-marinho. Ah, ela usava este em volta do pescoço como um talismã.
Foi naquele dia que algo explodiu, ninguém sabe onde, e ela teve que se esconder em uma gruta de coral no fundo do parque. Ela pegou a pequena criatura e a abrigou por muitos dias até que seu sangue fosse drenado e ela morresse. Aos poucos, ele se tornou apenas um pequeno esqueleto, mas a pequena sereia não o abandonou e, a partir de então, ela o usou como um talismã em volta do pescoço.
E lá ela permaneceu até que a caverna secou e não havia nada além de névoa, apenas uma pedra do mar onde ela se sentava por horas e uma pequena cama que ela havia tecido com os restos de algas marinhas queimadas, uma tarefa difícil, mas absolutamente necessária. Pois mesmo as tarefas mais absurdas em situações extremas se tornam essenciais, e fazemos malabarismos com os restos do que resta, criando o berço a partir da matéria do abismo.
De modo que, se lhe restasse algo, era hora de pensar, imaginar e sonhar, ainda mais como imortal. Pois, como todos sabemos, a virtude ou o inferno da imortalidade ocorre nessas criaturas. Aqui, a pergunta poderia ser feita: por que ela sobreviveu e os outros não? Ela não conseguia se lembrar, apenas de uma explosão no espírito de todas as coisas, e depois silêncio. Talvez tivesse sido o castigo do Deus do Abismo ou a bênção do Anjo das Utopias. O fato é que seus pensamentos a amontoavam como peças de um quebra-cabeça difícil de montar. Finalmente, ela concluiu: precisava encontrar uma maneira de recuperar sua voz perdida, de forma definitiva. Mesmo que supostamente tivesse nascido sem voz, ela se lembrava da música, uma terra sonora de brisas que surgia além da névoa daquela cidade submersa. E ela se propôs a encontrá-la.
Certa noite, ela decidiu subir; não conseguia ver a superfície em lugar nenhum, mas começou a nadar para cima. E nadou incansavelmente. Noites, dias, abismos de tempo, anos, talvez séculos se passaram. A pequena sereia continuou nadando em busca de sua voz. Em algum lugar além daquele poço sem fundo devia estar o significado de sua canção, isto é, a própria canção. E ela continuou nadando. Sua perseverança era tanta que ela não sentia mais o corpo, nem o cansaço a dominava. Acontece que, quando os empreendimentos que empreendemos são vitais, não há absolutamente nenhum obstáculo que possa nos impedir; é o que acontece com os ideais, e poderíamos dizer que a pequena sereia, mais do que séculos, atravessou gerações de tempo.
Certa vez, sentiu uma sensação de cócegas, algo como o toque de uma pena. Parou pela primeira vez. Seu rosto emergiu em direção à superfície do mar. O que a acariciava era a espuma da maré.
Olhou para cima e seus olhos se encheram de lágrimas. Lá no alto, uma abóbada infinita, pequenas estrelas cintilavam em um piscar eterno. E a pequena sereia continuou nadando. Mas desta vez, não para cima, mas buscando a costa. Queria deitar-se em sua cama e dormir para sempre, contemplando as estrelas. Nadou por mais um longo tempo, não mais séculos, não mais anos de névoa. Nadou sob a noite acariciada pelas ondas, pela brisa, estendendo os braços, afundando e emergindo repetidas vezes.
Então a lua apareceu. Ela nunca a tinha visto antes, mas se lembrava dela. Era branca, prateada como o corpo nu de uma deusa do mar, e ela imediatamente se apaixonou por ela.
“Lua, pequena lua, o que aconteceu com o canto da sereia que habita o mar de brumas?” E assim, perguntando com seus pensamentos que nunca lhe alcançaram a garganta, ela lentamente conquistou a praia.
Lá ela caiu exausta, deitada de brumas para o céu, com os olhos arregalados, ainda perguntando:
“Lua, pequena lua, o que aconteceu com o canto da sereia que habita o mar de brumas?”
E finalmente ela adormeceu. O deus Morfeu a aconchegou em sonhos deliciosos, enquanto Empíreo: o céu estrelado estava mudando seu mapa de constelações. Deve estar ali o segredo. Pois até o mais teimoso dos mistérios um dia nos será revelado. E o céu estrelado chamou Orfeu, agora transformado em uma forma. E como um raio de luz, Orfeu deixou cair sua lira aos pés da pequena sereia. Ali estavam alojadas todas as vozes abafadas dos poetas e também as canções mortas das criaturas marinhas.
Ao acordar, a pequena sereia ouviu um canto como o da aurora saudando o dia que chegava, um canto com brilhos e harmonias suaves que permaneciam suspensos como a luz que reside no céu. Ela deslizou desajeitadamente pela margem, tentando alcançá-lo, mas não foi necessário. A voz entrou em sua garganta e preencheu seu peito, fazendo suas cordas vocais vibrarem pela primeira vez.
Lá em cima, a constelação de Orfeu piscava para ela, e o céu estrelado cintilava suas estrelas uma a uma. A Lua, por sua vez, a cobria com um manto de seda quente. A pequena sereia estremeceu. A névoa havia cessado.
Era a luz que começava, o canto que retornava aos corações das criaturas após a última explosão.
Marta Oliveri
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Natural de Buenos Aires, é escritora, poetisa, romancista, docente e ensaísta argentina, com destaque na literatura argentina contemporânea. Neta do poeta húngaro Vèr Andor, abordou o problema de seu tempo a partir de uma postura poética e existencial. Sua busca por escrita representa a realidade completa de uma geração sobrevivente, sendo reconhecida por seu compromisso com os direitos humanos. Publicou mais de 20 livros, incluindo poesia, novela e ensaio. Na poesia, destaca ‘Antologia do Desamparo’, que reúne nove coletâneas de poemas e reflete a busca poética ao longo dos anos. Na ficção, o romance ‘O Homem no Copo d’Água’ é uma de suas obras mais notáveis e pessoais. E nos ensaios, ‘A Outra Visão’ é uma obra que lhe permite refletir sobre temas pelos quais é apaixonada. Esses três livros, embora de épocas diferentes, são, sob a ótica de Marta Oliveri, os que melhor a refletem como escritora, representando a completa realidade de uma geração sobrevivente, e, com isso, ensejando-lhe elogios por intelectuais como Leonardo Senkman. Por sua expressiva carreira literária, foi indicada ao Prêmio Nobel de Literatura em diversas ocasiões, pela Sociedad Argentina de Periodismo Médico (SAPEM) e a Asociación Latinoamericana de Poetas (ASOLAPO).


Sobrevivir, soña y ELEVARSE más allá de todo. Un privilegio que pocos poseen.
Excelente y aleccionador relato que no solo nos da una profunda lección en éste mundo el cual nos ha tocado transitar y buscando la luz en ocasiones, entre la más triste oscuridad, no obstante ésa luz que nos transmites nos eleva y nos salva.
Muy agradecida siempre querida Marta oliveri. Nuestra candidata al Premio Nobel de literatura y orgullosamente Argentina!.
Brenda Beauvoir- Escritora.
Gran poeta, bella persona mil gracias por tus palabras
Uno no sabe que deslumbra más en este cuento maravilloso umbuido de la profunda:las melancolía que transmite su autora, todo sea auna en el:las desventuras de esta sirenita mágica deseando ser niña, el soñar despierta que se comparten con los seres del mar y en la playa, esos esfuerzos por recuperar su voz, algo vital, supremo ideal.
Siempre hay un reinicio, aún después de la última explosión en esos “misterios tan obstinados. Ellos algún día nos serán revelado” Ahora eso lo sabe solo la sirenita de dulce voz que sigue ascendiendo a la orilla del mar
Muy bello y profundo comentario, poeta
Un hermoso cuento de nuestra querida Martha que profundamente nos muestra nuestra gran realidad poeticamente para sostener y dar esperanza a nuestra especie que algun momento podamos ver la luz ante tanta crueldad que esta viviendo la humanidad.
Que e cierto y hermoso tu comentario mil gracias por tus palabras
No te conozco, tampoco sé de tus escritos. Pero auguro para ti toda la suerte del mundo.
Quien alza la voz, quién marca huellas para una vida mejor, merece todo tipo de reconocimientos.
La palabra tiene fuerza, tiene tiempo indefinido, tiene valor y se arraiga en el pasado, presente y futuro. Es el gatillo que prende la luz del conocimiento, de la esperanza ante la indiferencia de la ignorancia que impide la transformación social- Es la herramienta al servicio del pueblo.
Muchas Gracias!