Evani Rocha: Conto ‘Sob o sol de outubro’


Escorei no parapeito da janela de madeira. Olhei a estradinha de terra que sumia na planície seca. O brilho do sol ardente de outubro dava uma impressão de terra molhada. Eu sabia que era ilusão de ótica, pois no terreiro de chão batido, a terra seca rachava, formando sulcos e valas sedentas. O único verde por ali, eram os mandacarus espinhosos. “Esses suportam essa seca tremenda, porque têm a capacidade de guardar água. Deve ser a água que caiu do céu há muitos meses pela última vez”. Ponho-me a pensar sobre aquele cenário desolador, quase não senti os cotovelos magros doerem escorados na madeira da janela. Era hora de partir, eu tinha mesmo que enfrentar aquele caminho espinhoso e poeirento.
O ônibus da vila mais próxima partiria há poucas horas. afastei-me da janela e a fechei devagar, girando a tramela. Fui ao quarto, olhei a imagem de Nossa Senhora, amarelada, pendurada num prego na parede de adobe. Pensei em tirá-la, mas hesitei, não daria conta de carregar muitas coisas a pé, pois a distância era grande. Fiz o nome do pai, e, decidi deixá-la ali, onde esteve por tantos anos. Somente enrolei o cabelo longo, fazendo um rabo de cavalo frouxo. Arrumei o lençol florido, bem desbotado, passei a mão de leve sobre a cama. Abaixei e peguei a trouxa de roupas que arrumei para a viagem. Nada mais além de dois vestidos e algumas blusas surradas.
Dei alguns passos e sai do quarto. Entrando na cozinha, lembrei-me da garrafa de água que precisava levar: “Num sol desses quem é que aguenta andar sem beber água?!” – Fui ao pote no canto da prateleira e retirei a água com uma caneca de alumínio. Enchi a garrafa e a ajeitei ao lado da bagagem. Olhei em volta, observando pela última vez aquele ambiente. Era apenas duas peças construídas de adobe, coberta com telhas de barro, antigas. Tinha porta e janela de madeira rústica, era tudo extremamente simples. Mas foi ali que eu morei meus últimos dez anos ao lado de Jeremias. Ele sabia que eu iria embora, porém, há dias andava cabisbaixo e quase não dizia nada. Às vezes eu tentava entrar no assunto, mas ele evitava. Sempre saía. Já havia me dito antes:
– Você pode ir! Aqui é muito seco. Eu sei que a vida tá insuportável, mas eu vou ficar. Pode ir, sem remorso nem piedade de mim…”
Mas eu sempre insistia:
– Vamos homem, vamos tentar a vida na capital, enquanto ainda temos força pra trabalhar!
E ele, com o mesmo argumento de todos os anos:
– Acabei de plantar o milho…vai chover, mulher! Vai chover…deu na previsão. Eu tenho fé. E quando der a primeira chuva, o milho nasce todo e a gente tem fartura! Dizia com os olhos lacrimejando e a voz embargada. Mas amanhecia e anoitecia com o mesmo céu limpo e um Sol grande, como a esperança de Jeremias.
– Não há mais água nas cacimbas, os últimos animais podem morrer logo, homem! Já estamos com pouca água de beber no reservatório. Não podemos dar aos animais! Seu Bené me disse que compra as duas cabras…o cabrito eu vou deixar com o compadre João, esse ano ele tem palma. Da pra aguentar por lá…Eu não vou esperar essa fartura ilusória que você espera todo ano em vão! Não tem uma nuvenzinha sequer nesse imensidão de meu Deus! Se você não quer ir, eu vou-me embora sozinha! Tomo o ônibus ali na vila e vou trabalhar na Capital.
– Vai mulher! Pode ir…arrume suas coisas, eu lhe dou a passagem, tenho uns trocados. Eu lhe desejo boa sorte!
Era finalzinho de tarde, naquele dia. Jeremias estava falando sério. Ele não tinha um tom de voz agressivo, mas conformado e melancólico. Entrou no quarto e veio com as últimas notas que tinha guardado da venda dos animais. Estendeu a mão trêmula, com o dinheiro. Eu fiquei sentada no banquinho de madeira olhando seu rosto sisudo. Desviei o olhar para o pôr do sol muito vermelho, que se escondia atrás dos mandacarus. A noite é sempre triste no sertão. Ela traz um vazio, talvez seja apenas um silêncio para que possamos preencher a nossa alma com alguma esperança perdida. Relutei em pegar aquele dinheiro. Ele insistiu:
– Tome! Pegue, é teu mulher…está livre, pode ir quando quiser.
Virou-me as costas e foi sentar num tamborete atrás da casa, como de costume, devorando um cigarro de palha. Eu fiquei parada ali, apertando aquele dinheiro nas mãos. Meu corpo parece que havia se descolado da alma. Eu estava imóvel, não tive reação. Senti uma tristeza, uma pena de nós… Eu ainda não tinha certeza se iria mesmo partir, sem Jeremias.
Mais de um mês se passou, desde o dia que Jeremias me deu o dinheiro da passagem. Hoje, eu o vi levantar e escutei o barulho das panelas no fogão. Todos os dias ele prepara a farofa de ovo ou carne seca, quando tem. Faz um café preto, prepara sua marmita e vai pra roça. Lá, limpa a capoeira, roça o mato espinhento que cresce na plantação de mandioca. Quando cansa, se ajeita na sombra de uma quixabeira e come sua matula. Eu sei que Jeremias olha muito para o céu, à procura de qualquer ínfimo sinal de chuva. Ele vela pelo nascimento de suas sementes de milho e feijão. Jeremias é um bom homem. É um homem de fé. Homem de fé não desiste fácil dos seus sonhos…
Não tive coragem de falar que iria hoje. Ouvi o rangido da porta, ao fechar. Pelas pequenas frestas da parede percebi o dia turvo, o Sol não havia saído. Ainda fiquei hora na cama tomando coragem para sair. Não me despedi de Jeremias. Não temos nada para dividir…minhas poucas roupas e uma sandália de couro cru é tudo que tenho.
Vou andar a passos largos, não quero perder o único ônibus que sai do povoado a cada dois dias.
Ajeitei com carinho um vasinho de margaridas que enfeitava o centro da mesa. Estiquei o paninho branco de crochê. Passei uma vassourinha sobre a chapa e a cauda do fogão a lenha, para retirar as cinzas. Certifiquei-me de que estava tudo limpinho. Pendurei a trouxa no ombro. Dei dois passos em direção à porta, olhei a estradinha sinuosa, brilhando com o calor do sol. Puxei a porta e rodei a tramela por fora. Ajeitei meu chapéu de palha na cabeça e tomei o caminho em direção à vila. Ora pisava num solo duro e rachado, às vezes afundava o pé num pó fino que levantava e era carregado pelo vento quente que soprava do norte. À minha frente, uma imensidão ocre se misturava com uma vegetação seca, onde apenas corvos e calangos se arriscavam a visitar.
Para trás, quase sumindo atrás dos mandacarus, ia se distanciando de mim uma pequenina casa de adobe, descascados e telhas avermelhadas, em meio a um extenso terreiro de chão rachado. Sobre nós, uma imensidão de céu, pintado de azul, muito profundo, e um Sol tão grande quanto a tristeza que eu carregava naquela pequena bagagem.
Evani Rocha
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Evani Rocha, natural de Chapada dos Guimarães (MT) é bióloga e professora da rede pública há 25 anos, com pós-graduação em Educação, especializada em Literatura Brasileira. Na área literária é poetisa, escritora e autora dos livros: Retalhinhos (Poesia, 2020) e Folhas de Outono (Contos, lançado na Bienal/Rio 2023). Na área acadêmica, é Acadêmica Internacional da FEBACLA – Federação Brasileira dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes, da qual recebeu o título Embaixadora Cultural da Paz. Apaixonada pelas artes, em especial a pintura e a escrita, Evani Identifica-se como uma pessoa ligada umbilicalmente à natureza, onde passou boa parte de sua infância. As artes e a natureza são sua fonte de inspiração, motivo pelo qual sua pintura e escrita têm uma voz que ecoa, quase sempre, desse lugar-comum.


Evani, seu conto é triste. De uma tristeza belamente literária. Narra o que todos sabemos sobre a situação dos nordestinos, em particular, em relação à escassez de chuvas.
Você, Evani, é uma Escritora e Poetisa com as letras ‘E’ e ‘P’ maiúsculas, pois seus poemas e prosa são afinadíssimos com os melhores textos dos gêneros!
Sérgio Diniz, caríssimo escritor e editor!
Receba minha imensa gratidão e humildade, perante seu generoso comentário.
Sou uma eterna ‘arteira’ aprendiz, pelo imensurável gosto de fazer arte, em especial artes plásticas e literárias.
Gratidão sempre!
Seu texto me levou ao nordeste. É triste, mas fez chover emoções em meu coração. Imaginei-me ali, e se eu fosse esposa de Jeremias, eu acredito que faria o mesmo que ela fez. Parabéns, querida e talentosa escritora Evani Rocha. 🌟💕