outubro 05, 2024
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Paulo Roberto Costa: 'Lembranças de guerra'

“Era uma clara e agradável manhã de domingo no coração da primavera. Uma leve brisa já tinha levado a chuva embora e o sol já secava o chão ensopado pela tempestade do dia anterior.”

 

Era uma clara e agradável manhã de domingo no coração da primavera. Uma leve brisa já tinha levado a chuva embora e o sol já secava o chão ensopado pela tempestade do dia anterior.

Caminhando por uma estreita trilha ao lado de uma longa e larga faixa de água, apropriadamente conhecida como “O espelho d’água”, podiam-se observar inúmeros esquilos que cruzavam o caminho e uma imensa variedade de pássaros coloridos voando por toda parte. A sensação de calma era tal que quase não se percebia um estranho zumbido que pouco a pouco aumentava de intensidade. Então, repentinamente, um barulho ensurdecedor quebrou a tranquilidade idílica daquele pedaço de paraíso. Alguns metros acima, as formas assustadoras de dois enormes helicópteros militares encobriram momentaneamente o sol, pairando por alguns instantes com os canos das potentes metralhadoras projetados ameaçadoramente em direção ao solo, para então rumar em direção sul.

Eu estava no parque principal da capital do mais poderoso país do planeta na atualidade, indo em direção ao monumento ao Vietnã, marco de uma das mais nefastas guerras dos tempos modernos, ao lado do memorial a Lincoln, marco da sangrenta guerra civil norte-americana, imaginando a influência de todas essas guerras na vida e na mente do povo deste país, que parece respirar belicosidade.

Chegando ao local dos monumentos, fiquei impressionado mais com a multidão reunida em torno a eles que pelas estátuas propriamente ditas, as quais representam a união do povo americano, brancos, negros e indígenas, na luta pelos ideais e inimigos comuns. Havia representantes de todos os cantos do mundo, sussurrando em dezenas de idiomas diferentes, a maioria dos quais eu sequer conseguia identificar, tirando centenas de fotografias e fazendo horas de gravações em vídeo, para comprovar suas presenças àqueles que ficaram em casa.

Depois de algumas fotos que tirei também pelos mesmos motivos, deixei aquele rebuliço de turistas tendo minha atenção despertada por uma longa fila de pessoas em frente a um muro de mármore preto, que reconheci como sendo o local onde estavam gravados os nomes de todos os 58.000 soldados americanos mortos ou desaparecidos em combate no Vietnã. O impressionante monumento começava a poucos centímetros do solo com os nomes dos primeiros soldados desaparecidos, aumentando de altura na medida em que mais nomes eram acrescentados, de acordo com a data de seus desaparecimentos.

A maioria dos turistas apenas passava por ali, em respeitoso silêncio, observando os que, tendo algum parente entre aqueles nomes, rezavam, choravam ou simplesmente fitavam silenciosa e obstinadamente um nome no muro. No chão, flores, letras, poemas, fotografias, presentes e todo tipo de lembranças. Uma sofisticada versão americana do Muro das Lamentações judaico.

O silêncio, respeitado até mesmo pelas inúmeras crianças, lembrava um funeral de verdade de alguma figura importante e querida.

Foi então que eu o vi. Um homem alto e magro, de cabeça raspada por baixo do quepe militar, vestindo um uniforme completo do exército, exceto pelas calças, substituídas por um jeans muito usado. Em seu peito inúmeras medalhas. Estava parado, quase em posição de sentido, olhando atentamente para o muro em um silêncio profundo, tendo uma mão apoiada sobre uma bengala e a outra bem rente ao corpo. Parecia uma sentinela. Sua aparência séria e taciturna dava a impressão de ser alguém acostumado a dar ordens e a ser obedecido incondicionalmente; alguém de fortes convicções, talvez um oficial. Fiquei imaginando que responsabilidades ele deveria ter tido e qual seu papel naquele evento todo.

Embora sua face não revelasse emoção alguma, seus olhos fixos no muro, olhando atentamente para um lugar distante no passado, pareciam contemplar cenas que simples palavras não seriam capazes de descrever. Fiquei imaginando quantos daqueles nomes ele reconhecia. Quantos deles ele tinha visto morrer. A que horrores ele teria sido submetido. E o que dizer de todo sofrimento, dor, mortes que teria presenciado. Quantos seres humanos, apelidados de inimigos, ele poderia ter tido que matar? E o mais importante de tudo: para quê?

De repente, ele se virou e nossos olhares se encontraram. Fiquei desconcertado, como se tivesse sido descoberto fazendo algo errado, talvez invadindo sua privacidade. Sentindo-me culpado e um pouco envergonhado desviei o olhar, fingindo não tê-lo percebido, mas não pude evitar encará-lo, novamente. A intensidade do seu olhar me surpreendeu. Ele não parecia furioso ou ofendido; ao contrário, seu olhar era triste e demonstrava compreensão, como se estivesse lendo meus pensamentos e percebido toda minha compaixão por ele. No momento em que ele se voltava para encarar o muro novamente, percebi um brilho perdido de uma lágrima que ele se esforçava por manter escondida no profundo do olhar.

Os poucos segundos em que isso aconteceu me pareceram horas. Alguns instantes depois ele se virou e foi embora, apoiado em sua bengala, mancando, lento e dificultosamente por entre a multidão, aguardando de tempos em tempos que as pessoas lhe dessem passagem, como que inseguro de conseguir dar os passos.

Fiquei observando-o por um longo tempo, arrastando sua perna inutilizada, caminhando em direção a outros monumentos de guerra, olhando fixamente à frente, como se nada mais existisse ou importasse no mundo, apenas sua memória cheia de lembranças, duras lembranças de guerra.

 

 Paulo Roberto Costa – paulocosta97@gmail.com

Sergio Diniz da Costa
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