“‘Promessa para chover!’ é daquelas peças que não devem nada a qualquer outra com a mesma proposta. Aliás, a peça é produto para ‘exportação’: deve ser vista em outras paragens, certamente.”
Um dos indicadores do grau de civilização da Antiguidade Clássica, ou seja, de Grécia e Roma antigas, era a presença na face urbana dos teatros. Obviamente que diversos outros povos desenvolveram as artes cênicas, sejam em cerimônias (às vezes de cunho religioso), sejam como entretenimento e arte. No entanto, o mundo ocidental bebeu dessa fonte como influência para a criação do paradigma de estruturação do teatro como arte.
De certa forma, a presença de grupos teatrais – e, por vezes, de prédios dedicados ao teatro – em uma cidade traz a agradável impressão de que naquele lugar a cultura ainda prospera. Não deixa de dar a mesma impressão que aos antigos de que onde existe o teatro há “civilização”. Não no sentido preconceituoso da palavra, dividindo pessoas e grupos sociais, mas apontando para o esmero e cuidado com coisas nobres.
Por isso o contentamento com o qual pude apreciar a encenação no último sábado da peça “Promessa para chover!”, do Grupo Ararapuca. Exibida na Estação das Artes, a peça tem sua ação focada na Vila de Araritaguaba, no ano de 1792. O ápice da história se dá quando um padre, representando a religião oficial, se depara com uma benzedeira, esta representando o catolicismo popular, alternativo e miscigenado. Ambos estão preocupados com a estiagem que se prolonga e castiga o povoado, mas a solução apresentada pela benzedeira – de realizar uma procissão e banhar a imagem de Santo Antônio nas águas do Rio Tietê para obter do santo o milagre da chuva – causa repugnância do padre que vê nisso prática de feitiçaria e superstição.
Lembra um pouco o “Pagador de Promessas”, de Dias Gomes, mas só nesse ponto do embate entre duas visões religiosas. A peça é original e apresenta de forma bastante eloquente as tradições e o jeito de ser do paulista interiorano. É importante destacar isso, porque dentro dos regionalismos, o paulista é o que menos espaço angariou nas expressões artísticas. O sotaque, as expressões, o jeito de ser do paulista estão ali presentes.
O cenário e o texto estão impecáveis e tem mesmo o sabor natural, sem nenhum artificialismo, do nosso interior. A iluminação valoriza ainda mais as cenas que se desenrolam no palco e complementam, assim, o texto.
Não foram poucas as vezes em que assisti a peças teatrais produzidas nas cidades interioranas de São Paulo. Especialmente em concursos e outros certames como o Mapa Cultural Paulista e o Curta Teatro, realizado no SESI Sorocaba. “Promessa para chover!” é daquelas peças que não devem nada a qualquer outra com a mesma proposta. Aliás, a peça é produto para “exportação”: deve ser vista em outras paragens, certamente.
A oportunidade de se inserir no Mapa Cultural Paulista, cuja inscrição está aberta, não deve ser dispensada. Engrandecerá muito o nome de Porto Feliz se a peça tiver a oportunidade de participar desse evento e, desse modo, alcançar outros palcos.
Com elenco primoroso, a peça conta com os atores Évora Reis Wyatt, Felipe Oliveira, Elineu Tomé, Alison Souto, Rosana Diniz, Ivan Marcon, Márcia Paschoal e João Brusco. A direção é de Gilson Geraldo, com texto de Ivan Marcon e Elineu Tomé. Precisa dizer mais?
Se existissem mais iniciativas como essa do Grupo Ararapuca…, Araritaguaba seria uma potência! Quem assistiu, entenderá.
Carlos Carvalho Cavalheiro – carlosccavalheiro@gmail.com
19.02.2019
- O admirável mundo de João de Camargo - 2 de maio de 2024
- No palco feminista - 26 de dezembro de 2023
- Um país sem cultura é um corpo sem alma - 9 de agosto de 2023
Natural de São Paulo (SP, atualmente reside em Sorocaba. É professor de História da rede pública municipal de Porto Feliz (SP). Licenciado em História e em Pedagogia, Bacharel em Teologia e Mestre em Educação (UFSCar, campus Sorocaba). Historiador, escritor, poeta, documentarista e pesquisador de cultura popular paulista. Autor de mais de duas dezenas de livros, dentre os quais se destacam: ‘Folclore em Sorocaba’, ‘Salvadora!’, ‘Scenas da Escravidão, ‘Memória Operária’, ‘André no Céu’, ‘Entre o Sereno e os Teares’ e ‘Vadios e Imorais’. Em fevereiro de 2019, recebeu as seguintes honrarias: Título de Embaixador da Paz e Medalha Guardião da Paz e da Justiça e Medalha Notório Saber Cultural, outorgados pela FEBACLA – Federação dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes e o Título Defensor Perpétuo do Patrimônio e da Memória de Sorocaba, outorgado pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Filosóficos e Históricos. É idealizador e organizador da FLAUS – Feira do Livro dos Autores Sorocabanos