BATTISTI MERECE RESPEITO
“A gente vai contra a corrente,
até não poder resistir.
Na volta do barco é que sente
o quanto deixou de cumprir”
(Chico Buarque)
Não havia publicado até agora uma análise mais profunda da dita confissão do escritor italiano Cesare Battisti porque estava tendo dificuldade para assimilar mais este golpe do destino, num período tão carregado de desencanto e retrocesso. A cabeça explode, como dizia uma música experimental do Walter Franco.
Depois de mais de meio século dando meus melhores esforços para ajudar a conduzir os brasileiros e a humanidade para um estágio superior de civilização, é melancólico ver os brasileiros e uma parte da humanidade olhando fascinados para o abismo e desejando uma regressão tão aberrante quanto o foi o milênio de trevas subsequente à queda do Império Romano.
Impossível não lembrar do augúrio sinistro de Friedrich Engels, num de seus textos menos conhecidos: quando a força que encarna o progresso necessário num determinado momento histórico é contida e anulada, abrem-se as portas para a barbárie. Referia-se à derrota de Spartacus, cuja revolta de gladiadores poderia ter levado à abolição da escravatura em Roma, libertando as forças produtivas para novo salto evolutivo.
Não tenho dúvidas de que algo semelhante esteja ocorrendo na atualidade, com a desigualdade econômica gerando tais distorções em cascata que não há mais como garantir-se prosperidade econômica para o conjunto das nações: a abastança de umas poucas tem sempre como contrapartida a penúria da muitas outras
Roma retalia: 6 mil gladiadores de Spartacus crucificados num só dia, ao longo da Via Apia |
Isto se dá também no plano individual, colocando os seres humanos numa canibalesca disputa pelo êxito pessoal, que mina os laços de solidariedade imperativos para encontrarmos a única saída possível do atual pesadelo, qual seja a união dos novos escravos contra a renovada forma de dominação.
Também não há como impedirmos que, sob o capitalismo, continuemos marchando insensivelmente para catástrofes ambientais que poderão até determinar o fim da espécie humana, pois é o lucro que manda, que a tudo e todos comanda, passando por cima até do nosso instinto de sobrevivência.
Por não compreenderem o porquê de suas desditas sem fim, as pessoas mais simples são facilmente manipuladas, engolindo a patranha de que o capitalismo só não estaria funcionando a contento por causa do déficit da Previdência Social, ou dos corruptos que assaltam o erário, ou dos petistas/comunistas com suas mamadeiras fálicas, ou seja lá qual diversionismo for.
O desespero as corrói, precisam botá-lo para fora. Então, mesmerizados pela monumental engrenagem de comunicações a serviço da manutenção do status quo, eles passam a odiar os idealistas que lhes são falaciosamente apresentados como inimigos do povo.
Tangidos para o ódio, eles são joguetes da irracionalidade |
Tal ódio desembestado acaba de eleger os piores presidentes do Brasil e dos EUA em todos os tempos, levar o Reino Unido a optar pelo empobrecimento acelerado (e não encontrar agora uma forma de desfazer a besteira que fez) e sabe-se lá quantos estragos causará até que a sociedade se cure de sua loucura autodestrutiva.
Em meio a isto, uma extremamente suspeita confissão de Cesare Battisti é aceita e trombeteada como se prisioneiros não estivessem sujeitos a todos os tipos de pressões e coações, tendo sido levados a agir flagrantemente contra seus interesses num sem-número de vezes e de países ao longo dos tempos.
O fato é que a Justiça e a polícia italianas, depois de se haverem prostrado vergonhosamente a Mussolini, tiveram outro período negro durante a caça às bruxas subsequente ao assassinato de Aldo Moro em maio/1978, atuando durante tal apagão como um mero instrumento de vingança da sociedade.
Foram então introduzidas aberrações como a prisão preventiva que poderia durar até mais de 10 anos (ou seja, mesmo o suspeito não tendo sofrido condenação nenhuma, corria o risco de amargar uma década atrás das grades) e a delação premiada, um dos mais repulsivos atentados à dignidade humana jamais perpetrados em nome do utilitarismo judicial!
Assim, mortes ocorridas há quatro décadas e das quais ninguém acusou Cesare Battisti quando foi preso, acabaram sendo-lhe atiradas nas costas posteriormente, num novo julgamento baseado unicamente nas fantasias contadas por delatores premiados.
Desde Mussolini a Itália recai periodicamente no culto da força, da intolerância e da vendetta |
Estes, ansiosos por fazerem jus aos benefícios barganhados com os promotores, descarregaram suas próprias culpas sobre quem, após ter fugido para a França, estava aparentemente a salvo da vendetta (jamais Justiça!) italiana.
E o fanfarrão lascivo Silvio Berlusconi, um neofascista sempre ávido por holofotes, viu no sucesso literário de Battisti uma oportunidade para um grande espetáculo de mídia, desencadeando uma perseguição mirabolante para poder exibir triunfalmente uma cabeça famosa em sua sala de troféus.
Idêntico rigor jamais foi mostrado pelas autoridades italianas em episódios infinitamente mais graves cujos autores eram de extrema-direita, como o atentado terrorista que matou 85 pessoas numa estação ferroviária e feriu mais de 200 em agosto de 1980.
As investigações foram flagrantemente insuficientes, as punições brandas e houve enorme empenho oficial em desmentir a possibilidade de envolvimento do serviço secreto italiano. Não é mera coincidência que quatro obscuros assassinatos de um obscuro grupúsculo ultraesquerdista tenham sido martelados na mente de leitores, espectadores e ouvintes do mundo durante quatro décadas, enquanto o terrível massacre de Bolonha ia sendo relegado ao esquecimento.
Massacre de Bolonha, um dos piores atos terroristas da História: querem que o esqueçam! |
Este é um resumo sucinto, mas verdadeiro, do drama que desembocou na recente prisão de Battisti na Bolívia.
Logo em seguida, a Justiça italiana, que jamais conseguira convencer os isentos e perspicazes de que aquele a quem perseguia encarniçadamente era um homicida e não um bode expiatório, fez soar todas as trombetas para celebrar a confissão de Cesare Battisti.
Conheço Cesare Battisti e sei quem é Matteo Salvini, um dentre tantos medíocres que fazem do rancor sua bandeira política, cuja aparência de vilão de spaghetti western traduz tão bem sua alma quanto a de um debochado Calígula contemporâneo condiz com a de Berlusconi. Pena que a maioria das pessoas esteja hoje com a sensibilidade embotada, não conseguindo mais perceber quem é quem só de olhar…
Mas, Battisti admitiu o que os inquisidores não conseguiam verdadeiramente provar, concedendo-lhes um formidável trunfo propagandístico. Por quê?
Ora, quem agora entoa o ignóbil coro do eu não disse? terá uma mínima noção do abalo que quatro décadas de perseguição injusta, trocando mais de países que de sapatos (grande Brecht!), produz na mente de um homem? Pode-se exigir que ele se mantenha herói após tantos percalços?
Não se trata de um personagem de comics books, é um ser humano cansado de sofrer e procurando ter um final de vida menos agônico.
Só por total ingenuidade ou incurável má fé alguém pode supor que Battisti tenha cedido tanto em troca de nada. Algum toma-lá-dá-cá
A mais óbvia seria uma promessa de libertação tão logo a poeira baixasse. Mas, talvez não seja a real, porque quem tanto fez para convencer o mundo de uma falsidade dificilmente deixaria vislumbrarmos a verdade com tanta facilidade.
O professor Carlos Lungarzo, que tem se empenhado durante toda a sua vida adulta na defesa dos direitos humanos, formula outra hipótese:
“O 41-bis [cumprimento da pena em condições de extremo rigor e isolamento] existe na Itália e é um grande escândalo. Foi condenado e criticado pelo menos 11 vezes pelas Nações Unidas e, apesar disso, a Itália não desiste dele. Minha conjectura é de que ele [Cesare] foi, de alguma maneira, pressionado pela procuradoria-geral da Itália de que se ele não aceitasse um acordo para confessar ele poderia ser mandado ao 41-bis. Esta suspeita está fundada em cinco ou seis opiniões muito confiáveis“.
Chegada à prisão de Massama, na qual Cesare recebe tratamento digno….
Lungarzo explica que Battisti encontra-se numa prisão que lhe oferece condições dignas:
“Esta prisão está na ilha de Sardenha, numa pequena cidade que se chama Massama, o quarto do Cesare é de 3×3 metros, tem um banheiro individual, conta com um pequeno fogão e ele pode ler“.
Será que repetiram com ele o surrado artifício do policial bom e o policial mau? Algum bom promotor lhe terá garantido a permanência numa prisão escolhida a dedo para que o Cesare nela preferisse permanecer, enquanto algum mau promotor o ameaçava de envio às masmorras medievais do 41-bis?
É óbvio que comparo o tempo todo a situação dele com aquela por que passei em 1970, quando fui o primeiro preso político da época a quem impuseram um arrependimento forçado (houvera dois arrependimentos pouco antes, um de alguns militantes que cumpriam pena no presídio Tiradentes e o individual do Massafumi Yoshinaga, mas ambos tinham sido negociados).
…ao contrário do que sofreria na de Favignana |
Quanto a mim:
— passei 75 dias incomunicável e boa parte deles sob tortura;
— antes mesmo de ser preso, já concluíra que a luta armada estava com os dias contados e me sentia muito culpado pela morte de um dos sete companheiros de movimento secundarista cujo ingresso na VPR eu liderara, porque não me ocorrera transmitir-lhes um quadro realista da situação, para que pudessem escolher se iriam ou não até o mais amargo fim (eu, mesmo ciente de que as chances de vitória se tornavam irrisórias, optara por seguir em frente); e
— sentia-me injustiçado por haver ficado de fora da relação de presos políticos trocados pelo embaixador alemão, tendo fortes motivos para suspeitar de que isto se devera a, lá fora, terem descarregado em minhas costas culpas alheias.
Aí houve uma intensificação das torturas e dos maus tratos a partir, mais ou menos, do meu 65º dia de prisão. Foi quando estouraram-me um tímpano e, finalmente, coagiram-me a escrever uma carta de arrependimento, enquanto era espancado por militares que entravam e saíam da sala onde uma companheira recebia choques elétricos e dava gritos lancinantes. “Você é o próximo”, vociferavam.
Em seguida, o tenente Aílton Joaquim me comunicou que eu passaria da solitária para uma cela normal, receberia de volta as minhas roupas, poderia tomar banho de novo, dispor de colher para as refeições, dormir num leito e não sobre um chão de ladrilhos — teria restituída minha condição de ser humano, enfim. Desabei num sono profundo, prostrado e amargurado. Alguns dias depois, fui despertado em plena madrugada e conduzido ao estúdio da TV Globo no Jardim Botânico, onde dei entrevista desaconselhando os jovens (como eu) a irem se desgraçar numa luta já perdida.
Fui ameaçado de morte no trajeto: “Ou você repete o que está na carta, ou nem volta pro quartel. A gente te mata e joga debaixo da ponte”, disse um dos membros da escolta, se não me falha a memória o famoso capitão Guimarães, aquele que virou bicheiro.
Cesare: “Não aguentava mais fugir”. |
Mas, eis onde eu queria chegar: passei mais de dois meses toureando os torturadores, de forma a não revelar-lhes aquilo que de mais importante eu sabia (nenhum dirigente estadual ou nacional caiu por minha causa, muito menos a famosa área de treinamento em Registro). Era um jogo arriscado e paguei caro por ele em algumas situações, mas resistia.
Quando, no pior momento que eu havia até então passado, e já muito fragilizado pela tortura prolongada e pelos outros acontecimentos e sentimentos que me atormentavam, de repente fui tirado da linha de fogo e pude finalmente dormir e me sentir gente de novo, não me restava mais ânimo para chutar o pau da barraca e passar por todos os horrores de novo.
Não sei se resignei-me a participar daquela ópera bufa por causa da ameaça de morte (provavelmente fajuta) que me fora feita ou porque os dias de trégua haviam me amolecido, fazendo-me desejar, sobretudo, que o pesadelo terminasse.
Faz sentido supor que Cesare estivesse também com suas forças tão exauridas que só quisesse ser mantido numa prisão menos desumana, podendo ler, quem sabe até escrever, e continuando a receber visitas frequentes dos seus entes queridos.
E, lendo aquela infame notícia distribuída mundialmente por uma agência italiana, fiquei com a nítida impressão de que ele nos deu duas dicas sobre o que realmente ocorrera.
O paralelo óbvio é a de um iminente revolucionário soviético que foi levado pelo stalinismo a confessar os mais estapafúrdios crimes contra o estado dos trabalhadores nos vergonhosos julgamentos de Moscou, mas, em meio àquela autodegradação toda, encaixou uma frase mais ou menos assim:
“Afinal, todos sabem que a confissão é um instrumento medieval de justiça“.
Para bons entendedores, sinalizou que sua confissão era do mesmo tipo daquelas que a Santa Inquisição arrancava de quem lhe caía nas garras.
Ao dizer que confessava suas culpas mas não estava incriminando mais ninguém, o recado cifrado de Battisti foi o de que ele dispunha do que era seu – o prestígio e a honra –, não traindo nem complicando a situação jurídica de outros; e que tinha o direito de assim agir depois de tudo que sofrera em sua fuga sem fim de quatro décadas.
Outra dica foi, claramente, ao afirmar que só negara os homicídios no Brasil para iludir os esquerdistas daqui e ter seu apoio. Como ele não é, e eu não conheço revolucionário que seja, ingrato a tal ponto, fica claro que ele estava nos comunicando o seguinte: como eu jamais proferiria, por vontade própria, afirmação tão absurda, que em nada me beneficia mas é tudo que o inimigo quer fazer com que o mundo creia, vocês facilmente perceberão que esta e todas as outras coisas estapafúrdias que eu disse não passavam de imposições dos inquisidores.
É como eu interpreto este deplorável episódio. Lamento que Battisti tenha chegado a uma situação em que só pôde sobreviver fisica e mentalmente mediante um sacrifício moral tão extremado, tendo de submeter-se a uma impostura que deveria encher de vergonha todos os que a tramaram, a ela se acumpliciaram ou com ela se rejubilaram.
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(por Celso Lungaretti)
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É fundador e um dos editores do Jornal Cultural ROL e do Internet Jornal. Foi presidente do IHGGI – Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Itapetininga por três anos. fundou o MIS – Museu da Imagem e do Som de Itapetininga, do qual é seu secretário até hoje, do INICS – Instituto Nossa Itapetininga Cidade Sustentável e do Instituto Julio Prestes. Atualmente é conselheiro da AIL – Academia Itapetiningana de Letras.