A solidariedade à cultura e escola
A escola tem, entre outras, a função de humanizar e formar cidadãos capazes de ler o local e o mundo criticamente. A escola angolana, mergulhada nas insuficiências que se lhe são apontadas todos os dias, sobrevive graças às contribuições de benfeitores externos e nacionais. Se se poderá questionar a agenda e os beneficiários do tipo de educação em voga, não se deverá negar que bons e maus frutos daquela fervilham na panela, onde se cozem os alimentos do Reino de Ngola.
Os carrascos, sacrificados e milagrosos professores, estão sempre à procura de omeletes numa era em que os ovos são 10conhecidos. Ademais, as cacetadas vêm de todos os lados e distribuídos a todos os agentes. O alerta soa sempre que o senhor exonera decide manuscrever e a bandeira da falência de um sistema cuja crise foi anunciada há décadas agiganta-se.
Entre os “falidos”, a Escola Superior Pedagógica do Bengo não é de todo inocente. Entretanto, seus bombeiros provocam algum equilíbrio turbulento. A novinha entra, aos poucos, no rol da fama e seus mártires lançados ao turbilhão de seres sedentos de amnistia e mais solidariedade.
A Escola, dentro das suas limitações, tem sabido aplicar o legado de João Boaventura Ima Panzo, segundo director-geral da instituição, segundo o qual “o padeiro deve comer e orgulhar-se da qualidade de seus pães”. Hoje, tem no seu quadro de docentes e funcionários não docentes, ex-estudantes que muito contribuem para que a educação formal seja menos sofrida e insignificante como se propala em alguns ciclos.
Parece-nos que, deste modo, também se cumpre a Lei n.º 32/20, de 12 de agosto, que no artigo 63.º, nas alíneas a) e h), estipula como um dos objectivos do subsistema de Ensino Superior angolano “preparar quadros com alto nível de formação científica, técnica, cultural e humana, em diversas especialidades correspondentes a todas as áreas do conhecimento” e “desenvolver e consolidar a orientação vocacional e profissional com vista ao exercício de uma profissão”, sem esquecer o objectivo específico do Ensino Superior Pedagógico definido na alínea a), do artigo 51.º, da mesma Lei, que é “assegurar a formação de indivíduos, habilitando-os para o exercício do serviço docente e de apoio à docência, ao nível de graduação e pós-graduação académica, outorgando os graus académicos de bacharel, licenciado, mestre e doutor”.
O Departamento de Ensino, Investigação e Extensão em Letras Modernas daquela instituição de Ensino Superior pública parece alastrar esse desiderato, inspirando artistas e “cutucando” criadores adormecidos. Nesse sentido, parece que as “cacetadas”, que dizem receber de tempo em tempo, deixam suas marcas e nem todas são negativas. Por isso, testemunham-se os “delírios” de Manuel Calimbue, na narrativa AMIZADE, NAMORO E SEXO, de Aniceto Ginga na narrativa O QUE OS MEUS OLHOS VIRAM, de António Camalandua “Igor” no poemário PARAÍSO VERGONHOSO, a sequência investigativa de Miranda Sebastião, apresentada na sua PROPOSTA DE ORIENTAÇÃO METODOLÓGICA: COMO USAR O ACENTO AGUDO EM PORTUGUÊS, o génio de investigador de António Kutema, em GENTÍLICOS DE ANGOLA e a introspecção de Seth Marcelo na obra TERMINEI O ENSINO MÉDIO E AGORA?
Pelo meio nomes como Tomás Eugénio, Educético, Francisco Kiassemua, Arlinda Garcia, Salmista Cortês, Wamai Zaki servem-se das plataformas digitais para palmilhar terrenos, onde gigantes se eternizam. Sim, a arte, embora não seja fácil nem tão simples, eterniza seus cultores.
Desde a primeira narrativa, vemos marcas da escola e dos agentes nela presentes. A humanização e a educação nos valores positivos é uma das missões da escola e, por isso, contribuições vão sendo feitas para a melhoria da qualidade das obras.
A narrativa mais recente é fruto de uma corrente de solidariedade. Mãos e cérebros de Angola e do Brasil doaram-se para dar corpo ao sonho de um muxiluanda, de 25 anos de idade. Refiro-me a DIAS DE EXPIAÇÃO, de Orlando Ukuakukula dividida em duas partes, mas que possui, nas entrelinhas e nas linhas da narrativa, influências de LAÇOS DE SANGUE, de Ismael Mateus, cuja leitura foi obrigatória do ano inicial da graduação e de NOITES DE VIGÍLIA, do renomado Boaventura Cardoso, também de leitura obrigatória, mas no último ano. A temática abordada carrega marcas das inúmeras discussões metateoréticas em Teoria da Literatura.
Esses dados ajudam a comprovar que a escola, de alguma forma, vai cumprindo com o seu papel da formação de homens preocupados com o progresso e desenvolvimento cultural dos povos e culturas.
De acordo com Costa, Muanza e Martinho (2022),
a narrativa angolana de ficção contemporânea oferece-nos perspectivas de leitura que permitem denotar nos eventos fictícios marcadores que identificam matérias de extracção histórica susceptíveis de os situar em determinados contextos históricos e sociais.
A narrativa DIAS DE EXPIAÇÃO responde a esse desiderato. Porquanto o título, DIAS DE EXPIAÇÃO, em nosso entender, representa as vivências sofridas por todos os angolanos, que ocorrem como penitência do incumprimento do almejado projecto de Nação. Não é por acaso que, nela, aparecem laivos de luta contra o colonizador, da resistência e das desigualdades sociais daquela época.
Os flashes que os narradores fornecem aos leitores remetem à história de Angola e dos angolanos. Aliás, dentro das insuficiências típicas de um estreante num mercado exigente, Orlando Ukuakukula se demarca dos demais por apresentar uma linguagem que o coloca como seguidor de Luandino Vieira no que a recriação dos falares dos axiluanda diz respeito.
Viva a produção artística! Viva a literatura! Viva a cultura!
É bom que continuem as críticas e as mãos solidárias que convergem para resolver as makas dos inconformados da nossa escola e realidade.
Referências Bibliográficas
- Lei n.º 32/20 de 12 de Agosto – Lei de Bases do Sistema de Educação e Ensino.
- Costa, L. C., Muanza, M. e Martinho, J (2021). Apresentação do dossiê Literatura Angolana Contemporânea In, Revell – Revista de Estudos Literários da UEMS, v.3, n. 30. pp. 6-9.
- Ukuakukula, O. (2022). Dias de Expiação. Crearte Editora, Sorocaba/ SP.
José Bembo Manuel
martinsbembo@gmail.com
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Natural de Luanda (Angola), é licenciado em Ensino da Língua Portuguesa pela Escola Superior Pedagógica do Bengo (Angola) e docente Assistente Estagiário afeto ao Departamento de Letras Modernas da Escola Superior Pedagógica do Bengo. Membro do Conselho Editorial e Revisor Linguístico da ESP-Bengo Editora desde 2018 e revisor da RAEU – Revista Angolana de Extensão Universitária. Com as artes no sangue, é ator do Grupo Twana Teatro há 14 anos. Revisou a obra ‘Língua Portuguesa: subsídios para o seu ensino em Angola’, da autoria de Márcio Undolo (1ª edição, Editora ECO7, janeiro de 2019. Co-organizou o ‘Manual de Auxílio às Famílias de Crianças com Necessidades Educativas Especiais’ (1ª Edição, ESP-Bengo Editora, 2018).