José Bembo Manuel
‘Sátira sociopolítica na obra
A Queda do Cão Cidadão, de Dias Neto’
A sátira é caracterizada pela ridicularização dos defeitos e vícios de uma época, de uma instituição ou de uma pessoa. Serve-se muitas vezes da ironia e do sarcasmo para induzir à reflexão sobre determinados actos morais, denunciando-os quase de forma eufemizada.
É a sátira o principal marcador que Dias Neto orienta a produção literária de Dias Neto. Depois de O Taxista, A Festa dos Porcos e Um Camaleão no Executivo, brinda-nos, em 2023, com a A Queda do Cão Cidadão. Trata-se de uma narrativa constituída por dez contos, sendo o título da obra o título do sexto conto.
Trata-se de uma leitura sociocrítica e histórica de Angola e dos angolanos. Nesse sentido, o conto “Quarto de Fezes”, republicado nesta obra, é um dos mais representativos. O ‘Quarto’ parece-nos representar ANGOLA e as ‘Fezes’, os MALEFÍCIOS E VÍCIOS criados e difundidos desde o alcance da independência, sendo denunciados e combatidos pelo Presidente João Manuel Gonçalves Lourenço.
A minoria que concentra as riquezas do país, é, no conto, metonimicamente, representada por um rei “seus integrantes gostavam de chamar o rei da terra de goloso. Diziam que era pançudo porque comia sozinho as comidas que o solo daquela terra oferecia…” (Neto, 2023, p.54).
A tão propalada liberdade de expressão e da imprensa abriu portas para a inserção de comentaristas apartidários ou da sociedade civil. Esse dado real foi ficcionado nos seguintes termos “De Táxi em táxi, levavam a notícia que aventava que o jornal “ Notícias do Reino” estava a dar cadeiras ao revus, o que significava que também o jornal estava a acusar o rei da terra de ser um pançudo guloso” (Neto, 2023, p.54).
A nova estratégia de comunicação do Presidente da República, por via das Conferências de Imprensa, é igualmente ficcionada como se pode ler em “…o novo Presidente traçou uma estratégia: convocou todos os papagaios e todos os pombos-correios para uma conversa amena na varanda do palácio” (Neto, 2023, p. 56).
Denotam-se também no conto as rixas entre os lourencistas e eduardistas a volta das riquezas acumuladas “porém, havia um pequeno grupo que engordou com o cheiro das fezes do antigo presidente da sua prole. Este ficou muito chateado, pois, ao lançar uma Guerra contra aquele quarto, o novo president queria vê-lo à mingua ou mesmo morto, porque aquele cheiro nauseabundo lhe dava vitalidade” (Neto, 2023, p.56).
Afirma-se que o Estado é o principal agente de violência. No caso do novo rebento de Dias Neto, a violência aparece de várias formas – privada ou institucional. No já mencionado conto, as nuances memorialísticas dos eventos relacionados aos 15 +2 são transpostos no ficcional. No conto “O Caso Suspeito”, a violência institucional é simbolicamente representada pela actuação da polícia que se esquece da função pedagógica que deve assumir e serve-se da força, deixando várias vítimas.
Por isso, na narrativa, Kota Beguê e Três e Meio, agastados com a actuação policial sobre as zungueiras, em particular, e aos cidadãos em geral, sugerem a privatização da Polícia Nacional conforme se pode ler em “apercebendo-se de que o Governo ia privatizar muitas empresas estatais, e uma vez que se alegava que com o acto tais empresas teriam melhor rendimento, decidiram escrever para o president a sugerir que o Governo incluísse também a Polícia no rol de empresas a privatizer” (Neto, 2023, p. 48).
Fica evidente na obra a relação do escritor com a realidade que o circunda. Práticas pouco comum na administração pública angolana aparece, ironicamente, descrita através de presenças assinaladas no local de trabalho de um “trabalhador” morto. Satiriza-se a chico-espertice de muitos funcionários e trabalhadores que, em conluio com técnicos dos Recursos Humanos, mais passeiam do que trabalham.
A morte de Guimarães, o morto-trabalhador, é do quanto trabalho há a fazer para se aumentar o comprometimento das pessoas depois de conquistadas as vagas de emprego e dos respectivos fiscalizadores.. Neste sentido, aqueles que combatem a corrupção e o furto são rotulados como os carrascos dos infractores. “Continuei ainda na imaginação e dessa vez, coloquei nela o Caetano, o fiscal que nos era um verdadeiro carrasco” (Neto, 2023, p. 13).
A violência simbólica, desenvolvida pelo Estado Angolano, outro eixo de leitura da obra, empurra para pobreza milhares de famílias e alimentam a coisificação do homem e as futilidades como forma de entreter o povo e a prostituição.
Na narrativa A Queda do Cão Cidadão, de Dias Neto, encontram-se também contos que tematizam essas realidades. Por exemplo, no conto Tempo dos Bolsos, questiona-se a relevância dos concursos de miss diante dos concursos artístico-literários, olhando para os incentivos e prémios de um e outro
“- Confrade, ela ganhou este carro no concurso?
- Não sei dizer. Sei apenas que para os concursos de leteratura nem um carrito de três cilindros dão como prémio”. (Neto, 2023, p.25).
O caenchismo é, n’A Queda do Cão Cidadão, o passaporte para flertar com senhoras endinheiradas, ou seja, para que jovens desempregados e de costas viradas com a formação académica possam, a troco da satisfação de desejos íntimos de banqueiras e empresárias, possam viver no luxo e ter estabilidade social conforme se lê em “Mas estas damas andavam a estudar como?! Aquele Marcelão que nem sabe escrever o seu próprio nome. Assim conquistou como a gerente do banco? – retrucou o musculoso do IPad” (Neto, 2023, p. 38)
O conto ‘A Queda do Cão Cidadão’ satiriza a arrogância e a prepotência de servidores da administração pública, que desumanizam os serviços, humilhando e frustrando utentes. Por outro lado, a arrogância de superiores hierárquicos e a incompetência no desenvolvimento de muitas de suas tarefas animalizam o tratamento.
A obra, pela dimensão pedagógica que encerra, pode ser utilizada a partir do terceiro ciclo do Ensino Primário, fazendo jus ao princípio segundo o qual é de pequeno que se torce o pepino e aproveitando o carácter humanizador do texto literário.
REFERÊNCIA
Neto, Dias (2023). A Queda do Cão Cidadão, Palavra e Arte, Luanda
José Bembo Manuel
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Natural de Luanda (Angola), é licenciado em Ensino da Língua Portuguesa pela Escola Superior Pedagógica do Bengo (Angola) e docente Assistente Estagiário afeto ao Departamento de Letras Modernas da Escola Superior Pedagógica do Bengo. Membro do Conselho Editorial e Revisor Linguístico da ESP-Bengo Editora desde 2018 e revisor da RAEU – Revista Angolana de Extensão Universitária. Com as artes no sangue, é ator do Grupo Twana Teatro há 14 anos. Revisou a obra ‘Língua Portuguesa: subsídios para o seu ensino em Angola’, da autoria de Márcio Undolo (1ª edição, Editora ECO7, janeiro de 2019. Co-organizou o ‘Manual de Auxílio às Famílias de Crianças com Necessidades Educativas Especiais’ (1ª Edição, ESP-Bengo Editora, 2018).