Póker (1)
A soberania de Ngola estava sempre por um fio. Rezas passaram a ser necessárias para apaziguar os ventos de kazumbi. A substituição passa a ser necessária e como o poder cega, a sucessão ganhou rosto de herança. O novo herdeiro, caçador feroz, pôs o seu plano em funcionamento. A caça por delapida dores fez a alegria anunciada pela sucessão tal qual a fumaça da (in)dependência trilhar caminhos nunca antes pisados. Os olhos de todos testemunhavam as (in)justiças, retalho e acções, a silenciar vozes e pensamentos. Entre os silenciados estava o velho Kilunji. Ele gostava de sunguilar (2)* com seus netos todas as noites. Em pleno dia de reflexão, no início da noite, pediu aos dois filhos que se juntassem aos seis netos. O entretenimento já ia alto quando Velho Kilunji pediu que sentassem todos à volta da fogueira e, em seguida, contou:
– Meus netos, meus filhos, ouçam com muita atenção o que vos vou contar, porque a vida é imprevisível e não sei se vos poderei dizer isso noutra altura.
– Vovô, estás doente? – interrompeu a Cisola (4), sempre traquina, mas atenta e precisa. Cisola era sempre a que mais cobrava respostas ao Velho Kilunji e aos seus pais.
– Não. Não estou doente, Ciso…
– Então por que é que falas como se o pai quisesse partir? Eu também fiquei preocupado. Desde que a mãe foi-se, parte de ti foi com ela. – Falou o Tambula, pai da Cisola, meio preocupado, meio triste.
– Estão a falar da Vovó Júlia, não é papá? O Vovó quer ir ter com ela às estrelas, papá? – atirou a Cisola silenciando todos os presentes por minutos.
A tristeza tinha se instalado. Era sempre assim se falassem da avó Júlia. Ela morrera no parto, num onze de novembro cujo ano todos se recusavam a lembrar. O onze de novembro tem muitas pontas soltas. Ninguém tem coragem para segurar uma delas e fazer as ligações e cortes necessários para o bem-estar de todos. Preferem seguir vivendo a (des)tapar as cubas escondidas nela. Mais ainda porque não trará de volta a esposa do Velho Kilunji nem o filho, perdidos naquele dia escolhido para ser o mais belo de todos os dias da família.
Desde a madrugada daquele dia, a hipnose alimentou suas vidas e o velho Kilunji nunca mais foi o mesmo. Decidiu aproveitar todas as oportunidades. Endinheirou amigos, familiares e alguns inimigos. Nessa fase foi endeusado, mas a cada ano que passava, de mais abutres se circundava. Aposentado, enquanto esperava pelo momento certo para partilhar as suas memórias de glórias, recupera os laços familiares junto dos netos.
– Meus filhos, o pior já passou. Na minha idade, pouco me surpreende. O que vejo e vivo são os últimos cartuchos que Deus me dá. A vida. Esta perdi no dia em que abri mão de Júlia e Nsimba naquele Hospital. Mas o que vos quero transmitir é outra coisa.
– O QUE NOS QUER CONTAR, VOVÔ? – perguntaram os netos em uníssono.
– Precisamos aproveitar as oportunidades. Esta é a minha e, por favor, não me interrompam. – pediu o Vovô aos netos.
– O último grande rei dessa região inspirou jovens e velhos, religiosos e ateus, tendo sido venerado por muitos e odiado por poucos. Ele herdou o trono sem grande experiência e julgava ele ser apenas uma missão necessária. Entregou-se à causa do povo. Tudo fez para não perder batalhas nem a hegemonia. Fardou-se e conduziu o seu exército à vitória numa triste e penosa batalha entre irmãos desavindos e ansiosos pelo poder a qualquer preço.
Avô, ele herdou um reino em guerra? – perguntou o Makuntwala.
– Não, Makuntwala. Desde a criação do reino, pairou sempre no reino uma tensão entre três irmãos, mas dois digladiaram-se mais tarde.
– Pai, não era mais fácil o trono ficar com o irmão mais velho em vez de ser um dos menores? – perguntou o Papusseco, um dos três filhos.
– Na nossa terra, o poder é sempre entregue aos mais velhos. São eles que resolvem os problemas. Mas, às vezes, a tradição não se cumpre. Os interesses dos poderosos orientam os destinos de tudo e todos. Com os mortos, igualzinho.
– O quê?! O novo rei morreu, Vô? – perguntou o Nzuzi.
– O Rei venceu a batalha e marimbondou-se…
– Como assim?!
– Meus netos, as pessoas, normalmente, juntam-se a nós porque temos alguma coisa que lhes pode ser útil. Vêm ter conosco porque despertamos algum interesse. Quando isso passa, somos apagados da memória da maioria. Igual destino têm muitos dos nossos feitos. Apesar disso, a confiança nos outros deve sempre seguir adiante, mas a cautela sobre as decisões e escolhas que fazemos hoje é importante.
O rei endeusado como era perdeu a noção do tempo e espaço. Condenou gerações inteiras à desgraça, invalidez, morte precoce e educação dependente, que não ensina a reflectir, mas a apenas seguir bala como um catavento ou robô infalível.
Certo tempo depois, o rei foi transformado em marimbondo rei a quem todos se tinham virado as costas. Qualquer contacto era sinal de traição ao novo rei, conhecido como Exterminador. O deus do povo era agora o novo diabinho e dono dos malefícios daquela região. Era também acusado de atacar a masculinidade de seus abutres, por isso, se negavam agora em defendê-lo do Vossa Alteza Exterminador, ou seja, rei Exterminador.
Todos pareciam não aprender que a vida era ainda uma caixinha de surpresas. No oitavo dia de julho, o Exterminador foi reduzido a assassino. O marimbondo rei estava já vencido e agora podia ser o trunfo para atrair as atenções de homólogos de outras paragens.
O rei, como que a saborear a vitória, atira no seu pé em resposta aos herdeiros. A tradição foi para o ralo. No final, os laços mudam-se conforme os interesses e uma divisão entre os herdeiros serve os intentos do Rei Exterminador.
– COITADO DO REI MARIMBONDO! – Exclamaram os netos.
– Coitado dos vivos! Meus netos, meus filhos, o Rei Marimbondo não podia mais ver, sentir, nem ouvir o que se dizia ou fazia aos seus. Nada mais o podia afectar. Até em mercadoria foi transformado.
– Ché! Grande pecado! Como puderam fazer isso ao Rei Marimbondo? Uma vez ouvi que rei uma vez, rei sempre. Naquela região não é assim?
– É, Cisola. – respondeu o Vô – As vontades dos homens mudam consoante seus interesses. A aposta que fazemos no presente determina o presente que vivemos. A ausência de aposta na nossa casa leva a que nos refugiemos na casa dos outros. E nenhum lugar é melhor que a nossa casa. Ele perdeu a vida na casa alheia. Mas era necessário que voltasse a casa antes do repouso que se deve dar aos mortos. Esse retorno, além de ser na companhia de malas, adornos e flores para mortos, marcou a hegemonia da humilhação, da hipocrisia e de que os reis servem-se a si e os seus, deixando para segundo plano as contradições que o destino nos oferece.
Cikala (5) interrompe o Avô: – Afinal, não é bom ser rei. Acaba-se sempre mal.
Não, Cikala. Não se acaba mal e é uma bênção ser o escolhido para dirigir os destinos do povo. Servir é diferente de fazer dos outros serviçais, meus netos. Essa tem sido a prática entre nós. Autodeterioramo-nos na cegueira que o poder carrega. Ser o Rei do povo é ter a oportunidade de fazer o melhor para todos. É doar-se aos outros, sem tirar vantagens da situação.
BUMM! BUMM! – Ouviram-se explosões de granadas no lado oposto ao quintal em que eles estavam.
Velho Kilunji tinha sido afectado pelos estilhaços de duas granadas. O peito estava completamente aberto. Acabara de ser mandado direitinho à esposa. Tambula estava imóvel no chão. As crianças, aos gritos, sem saber em que lado fugir. Cisola manda a voz de comando aos demais petizes para se dirigirem ao interior da porta. Elas obedecem e para lá caminham.
No quarto, o despertador toca. Papusseco desperta do sono. Eram quatro horas em meia, faltavam duas horas para o dia 24 de agosto. A cabeça lhe doía. Gostava de perceber a mensagem que seu pai lhe tentava passar com aquela história. Seu pai era um dos reis e ele seria um dos herdeiros, mas preferiu levar a sua vida como um desconhecido entre gente conhecida. De repente o telemóvel toca. Era a Carla a pressionar para que fossem à assembleia.
José Bembo Manuel
martinsbembo@gmail.com
N.E.
1. Póker. E em relação ao texto, PÓKER são os malefícios cultivados pelo rei Marimbondo (desgraça, invalidez, morte e educação precária), o tratamento que recebeu depois de morto (humilhação, desrespeito aos seus herdeiros, desvalorização da sua história no Reino e a caçada a que lhe foi imposta). Olhando para PÓKER enquanto jogo, estamos a olhar para a sucessão do reinado, onde o novo rei nem sempre diz as reais intenções nem dão a garantia de melhoria da condição de vida dos cidadãos nem a proteção de quem ele sucede.
2. Sunguilar. Seroar, passar a noite, quer cavaqueando, quer narrando passatempos, como histórias, adivinhas, quer folgando (as crianças) em rodas e outras diversões aportuguesado do Kimbundu. (3)
3. Kimbundu é uma das línguas bantu de Angola falada pelos naturais de Luanda, Bengo, Cuanza Norte e Malanje É falada por mais de um milhão e meio de pessoa
4. Cisola leia-se /tchissola/
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Natural de Luanda (Angola), é licenciado em Ensino da Língua Portuguesa pela Escola Superior Pedagógica do Bengo (Angola) e docente Assistente Estagiário afeto ao Departamento de Letras Modernas da Escola Superior Pedagógica do Bengo. Membro do Conselho Editorial e Revisor Linguístico da ESP-Bengo Editora desde 2018 e revisor da RAEU – Revista Angolana de Extensão Universitária. Com as artes no sangue, é ator do Grupo Twana Teatro há 14 anos. Revisou a obra ‘Língua Portuguesa: subsídios para o seu ensino em Angola’, da autoria de Márcio Undolo (1ª edição, Editora ECO7, janeiro de 2019. Co-organizou o ‘Manual de Auxílio às Famílias de Crianças com Necessidades Educativas Especiais’ (1ª Edição, ESP-Bengo Editora, 2018).