“Existe uma crise mundial na produção de filmes, de certa forma causada pelas transformações tecnológicas”. (Carlos Reichenbach)
Ozualdo Ribeiro Candeias, nascido provavelmente no ano de 1918, nem mesmo ele sabia ao certo, foi registrado 1922, em Cajobi, cidade paulista da região de São José do Rio Preto. De oficial da aeronáutica, caminhoneiro, a diretor que se destacou de maneira peculiar no cânone nacional; esse é apenas um ponto curioso da vida e obra de uma das figuras mais emblemáticas da produção brasileira da sétima arte. Possivelmente, pelas suas “andanças”, amealhou parte da inspiração para produções como “Rosas da Estrada” e “A Margem”, diante do forte viés social marcante em suas obras. Se de um lado, a crítica à problemática econômica, política e social era marcante no cinema novo, flagrantemente rotulado de elitizado sobre o ponto de vista intelectual, tais vertentes foram igualmente – e amplamente – exploradas no cinema marginal de Candeias e seus contemporâneos.
A despeito de sua forte atuação na chamada Boca do Lixo ou Boca do Cinema, polo da produção Paulista nos anos 60 a 80 localizado na região central de São Paulo, não se deve confundir o dito cinema marginal com aquele rotulado de “cinema da boca”. Não que tal comparação apresente feições pejorativas. Ao revés, grande parte dos títulos lançados no país entre o auge e derrocada da Boca, foram ali realizados. Decerto, as produções de teor mais apelativo e sensual da Rua do Trimpho, bairro paulistano da Santa Efigênia, não cerraram os olhos ao talento artístico, menos comercial, das idealizações de Candeias. Diante de sua criatividade marcante e extrema versatilidade, Antônio Meliande chegou a dizer que numa conversa com o diretor, qualquer pessoa poderia assumir sua formação acadêmica na área do colóquio, a respeito da qual dissertaria com autoridade, dada a facilidade com que gravitava em torno dos mais diversos temas.
Essa peculiaridade é marcante nos roteiros que em tom bem nacionais, replicaram nas terras tupiniquins, os Bang Bang Hollywoodianos ou os westerns spaghetti, como em “Meu Nome é Tonho”, sem destoar, repise-se, da brasilidade e pronunciados desdobramentos experimentais. O tom harmônico e atento às mazelas do campo e suburbanas, retratando o êxodo e consequentes problemáticas advindas, foram amoldadas de forma crua e visceral em “Zézero” e na icônica produção “A Margem”, que encena a vida (ou sobrevivência) nos entornos do Tietê. Segundo Moura Reis, em sua biografia para a Coleção Aplauso, editada pela Impresa Oficial, (Ozualdo Candeias. Pedras e Sonhos no Cineboca, 2010), a produção:
“(…)foca prostituta negra que batalha pela vida na miséria dominante da Marginal do Tietê e que, em determinado momento, cruza com pequeno séquito de casamento. Candeias capta seu olhar de encantamento, revelador de sonhos de pureza simbolizada na brancura do vestido de noiva. E seu sonho será concretizado por um homem silencioso, de terno e gravata – trajes que indicam origem social e econômica superior ao ambiente mas se transformam paulatinamente em andrajos. Compartilham o vagar na Marginal com um louco que colhe flores nos monturos em volta para oferecer à mulher amada, prostituta loura a quem a grande cidade, quase sempre vislumbrada ao fundo, trata com absoluta crueldade. Os quatro personagens serão passageiros de barco fantasmagórico conduzido por bela mulher. Imagens que, na análise de Moniz Vianna, remetem ao mito de Caronte, o velho e pálido barqueiro do Rio Aqueronte que transportava as almas penadas para o portal do inferno da Divina Comédia, de Dante Alighieri”.
Após comprar uma câmera 16 mm Keystone, instrumento que o habilitou a compor filmes caseiros, aprendeu a técnica cinematográfica de forma autodidata, fazendo com que se iniciasse na realização de documentários e curtas, como “Tambaú”, e “Cidade dos Milagres”, época em que frequenta o Seminário de Cinema do Museu de Arte de São Paulo (Masp). Atuando como cinegrafista, produz cinerreportagens e filmes institucionais encomendados para o governo do estado de São Paulo, enquanto, concomitantemente à sofisticação de sua visão criativa, se engaja com os realizadores da Boca, deflagrando seu impulsionamento mais forte na vertente da ficção. Aliás sua multitude funcional é elencada no site IMDB, (Internet Movie Data Base), tendo em vista que Candeias teria exercido as funções de diretor, roteirista, produtor, ator, diretor de fotografia, cinegrafista, editor, diretor e gerente de produção, desenhista de cenários figurino, diretor de segunda unidade e fotógrafo de cena. Já foi escrito que os artistas brasileiros, os quais digladiam-se com os parcos recursos – José Mojica Marins, nosso Zé do Caixão que o diga – usam a falta de recursos como elemento de criação, e, a partir dessa tônica, desenha-se uma das principais característica da marginalia fílmica nacional.
Taxado de sisudo por alguns, e até mesmo ríspido por outros, o amor e sensibilidade pelo cinema eram transpostos não apenas nas produções autorais, lembremos dos elementos de criação, mas no incentivo e hino de amor à arte da celuloide, indissociáveis à própria história do realizador paulista. O teor realista dos filmes de Candeias, pode-se dizer, é impulsionado por sua história pretérita como cinejornalista, viés que nunca abandonaria, sendo pertinente lembrar dos famosos curtas e mediametragens, “Uma Rua Chamada Triumpho” e “Festa na Boca” de 1972, pelo qual “passeia” pelos protagonistas da locomotiva que era o cinema paulista da época, convivendo em harmonia com a zona de meretrício e criminalidade na região. O crítico de cinema Salvyano de Cavalcanti Paiva, já escreveu:
“Candeias é cineasta intuitivo, original, com raro e forte senso de imagem. A tipologia que cria é do mais absoluto realismo: seu hábito de filmar, a falta de recursos econômicos, levou-o a uma espécie de marginalismo no cinema nacional, pois não usa rebatedor, não usa maquiagem nos atores, prefere trabalhar com gente sem experiências profissionais, enfim, faz filme sem concessão ao bom tempo da época”
À sombra dessa ideia, se as produções idealizadas no polo da Rua do Triumpho (utilizando a grafia antiga, em tom saudosista), podem ser, num primeiro momento, identificadas como um fenômeno ao reverso de um movimento propriamente dito, o cinema marginal ainda que caminhasse não de modo excludente ao cinema novo, teve, renove-se, seus próprios traços marcantes, cujos nomes indissociáveis são o próprio Candeias Rogério Sganzerla, de O Bandido da luz Vermelha, e Carlos Reichenbach. Em análise linear da evolução histórica das produções brasileiras entre os anos sessenta e setenta, quando o ingresso de cinema igualava-se ao preço de uma passagem de metrô e ônibus, verifica-se como admirável a possibilidade quase instintiva de sobrevivência dos títulos menos palatáveis ao grande público, de modo quase amalgamado à dita e ( e erroneamente) taxada de pornochanchada, que amealhava substancial público às salas de cinema.
Trata-se de um cinema esmerado, dissociado das amarras comerciais e pretensão puramente industrial, preocupação importante na época em que as produtoras privadas não caminhavam de mãos dadas com a extinta Embrafilme. Recentemente, polos culturais, precipuamente do Estado de São Paulo tem realizado mostras e homenagens ao cineasta, que, felizmente, pode receber algumas ainda em vida. Contudo, seus filmes, bem como os de seus pares, remonta a um período de cinema artesanal, que nas palavras de David Cardoso, importante nome dos anos setenta, não se faz mais.
FILMOGRAFIA COMPLETA COMO DIRETOR (Disponível em http://www.portalbrasileirodecinema.com.br/candeias/extras/08_01.php)
LONGAS
A MARGEM (1967) (1967)
Ficção, 35 mm, P&B, 96 min
O ACORDO (1968)
(episódio de Trilogia do terror)
Ficção, 35 mm, P&B, 42 min
MEU NOME É TONHO (1969)
Ficção, 35 mm, P&B, 95 min
A HERANÇA (1971)
Ficção, 35 mm, P&B, 90 min
CAÇADA SANGRENTA (1974)
Ficção, 35 mm, Cor, 90 min
AOPÇÃO OU AS ROSAS DA ESTRADA (1981)
Ficção, 35 mm, P&B, 87 min
MANELÃO, O CAÇADOR DE ORELHAS (1982)
Ficção, 35 mm, Cor, 81 min
A FREIRA E A TORTURA (1983)
Ficção, 35 mm, Cor, 85 min
AS BELLAS DA BILLINGS (1987)
Ficção, 35 mm, Cor, 90 min
O VIGILANTE (1992)
Ficção, 35 mm, Cor, 77 min
MÉDIAS
ZÉZERO (1974)
Ficção, 35 mm, P&B, 31 min.
O CANDINHO (1976)
Ficção, 35 mm, P&B, 33 min
CURTAS
TAMBAÚ, CIDADE DOS MILAGRES (1955)
Não-ficção, 14 min, 16 mm, P&B
POLÍCIA FEMININA (1960)
Não-ficção, 35 mm, P&B, 10 min
ENSINO INDUSTRIAL (1962)
Não-ficção, 35 mm, P&B, 12 min
RODOVIAS (1962)
Não-ficção, 35 mm, P&B, 9 min
AMÉRICA DO SUL (1965)
Não-ficção, vídeo, P&B/Cor, 30 min
CASAS ANDRÉ LUIZ (1967)
Não-ficção, 35 mm, P&B, 10 min
UMA RUA CHAMADA TRIUMPHO 1969/70 (1971)
Não-ficção, 35 mm, P&B, 11 min
UMA RUA CHAMADA TRIUMPHO 1970/71 (1971)
Não-ficção, 35 mm, P&B, 9 min
BOCADOLIXOCINEMA OU FESTA NA BOCA (1976)
Não-ficção, 35 mm, P&B, 12 min
A VISITA DO VELHO SENHOR (1976)
Ficção, 35 mm, P&B, 13 min
SENHOR PAUER (1988)
Ficção, 35 mm, Cor, 15 min
VÍDEOS
O DESCONHECIDO (1972)
Ficção, P&B, 50 min
HISTÓRIA DA ARTE NO BRASIL (1979)
Não-ficção, Cor, 21 episódios de 30 min
LADY VASELINA (1990)
Ficção, Cor, 15 min
CINEMATECA BRASILEIRA (1993)
Não-ficção, Cor, 13 min
OUTROS DOCUMENTÁRIOS REALIZADOS POR CANDEIAS
POÇOS DE CALDAS (1956)
Não-ficção, 35 mm, P&B
Direção: Ozualdo R. Candeias.
Fotografia: Eliseo Fernandes.
Produção: Eliseo Fernandes.
Cia. produtora: SESI.
Documentário institucional sobre as atrações turísticas da cidade de Poços de Caldas.
INTERLÂDIA (déc. 60)
Não-ficção, 35 mm, P&B, 7 min
Direção, fotografia e montagem: Ozualdo R. Candeias.
Produção: H. Rangel.
Cia. produtora: Rangel Filmes.
Documentário institucional apresentando as atividades econômicas, religiosas e sociais da cidade de Espírito Santo do Pinhal.
JOGOS NOROESTINOS (déc. 60)
Não-ficção, 35 mm, P&B, 10 min
Direção, fotografia e montagem: Ozualdo R. Candeias.
Produção: H. Rangel.
Cia. produtora: Rangel Filmes.
Documentário sobre os VI Jogos Noroestinos, ocorridos em Campo Grande.
MARCHA PARA O OESTE N° 3 (Campo Grande) (déc. 60)
Não-ficção, 35 mm, P&B, 9 min
Direção, fotografia e montagem: Ozualdo R. Candeias.
Produção: Michel Saddi.
Cia. produtora: Produções Michel Saddi.
Documentário institucional sobre os progressos da cidade de Campo Grande.
MARCHA PARA O OESTE N° 5 (Corumbá) (déc. 60)
Não-ficção, 35 mm, P&B, 9 min
Direção, fotografia e montagem: Ozualdo R. Candeias.
Produção: Michel Saddi.
Cia. produtora: Produções Michel Saddi.
Documentário institucional sobre o desenvolvimento econômico da cidade de Corumbá.
BASTIDORES DAS FILMAGENS DE UM PORNÔ – BR, SP – (déc. 90)
Não-ficção, Cor, 13 min
Direção, fotografia e produção: Ozualdo R. Candeias.
Documentário que através das fotografias de Ozualdo Candeias registra de forma irônica a realização de um filme pornográfico
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Nasceu em Cachoeiro de Itapemirim/ES, em 1989. Formado em Direito, é servidor do Poder Judiciário do Estado do Espírito Santo. Autor da obra “Verso e Prosa: Excertos de Acertos”, originalmente publicada em formato físico, coautor em antologias poéticas e de contos. Membro de Academias Literárias, recebeu prêmios e comendas, tais como: “Prêmio Monteiro Lobato”, “Prêmio Cidade de São Pedro da Aldeia de Literatura”, “Grande Prêmio Internacional de Literatura Machado de Assis”, “Medalha Patrono das Letras e das Ciências, Dom Pedro II”, “Medalha Notório Saber Cultura” e foi um dos vencedores do concurso internacional de poesias “Covid Times Poetry” promovido pela ONG “WHD – World Humanitarian Drive”. Foi agraciado com o Título de Doutor Honoris Causa em Literatura, pelo Centro Sarmathiano de Altos Estudos Históricos e Filosóficos, com a Comenda Olavo Bilac Príncipe dos Poetas, pela Federação Brasileira dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes (FEBACLA), o título de Cavaleiro Comendador da Ordem de Gotland, pela Soberana Casa Real e Imperial dos Godos de Oriente, dentre outras honrarias. É colunista de cinema e literatura, contribuindo para sites e jornais eletrônicos