COLUNA PSICANÁLISE E COTIDIANO
Sobre a ética e a figura do analista
Quando se fala em ética, remetemos ao entendimento de que se trata de uma área da Filosofia responsável pela investigação dos valores morais e de padrões comportamentais que regem a maneira como nos dirigimos ao outro. É comum associar a ética ao conjunto de práticas que determinam a ação humana, as normas e regras próprias do convívio em sociedade que conduzem para a segurança e ao bem-estar coletivo. Isto é um norteador comum para as pessoas viverem minimamente em harmonia.
No entanto, ao adentrarmos no terreno da ética em Psicanálise há que se considerar condutas e entendimentos fundamentais de cada sujeito. A ética agora é a do inconsciente. A saber, por mais que a sociedade tenha valores éticos e morais definidos de acordo com cada organização social e cultural, o psicanalista deve considerar sempre o desejo do analisante, isto é, suas pulsões enquanto naturalmente humanas e, inclusive, as de direcionamento destrutivo, agressivo e repetitivo próprios da pulsão de morte. Estes conteúdos insistem o tempo todo e são puramente constituintes de nossa natureza pulsional. Não agimos por instinto como os animais, mas pela via da pulsão.
Por assim dizer, o ser humano é capaz de poluir, destruir sua própria morada, devastar a natureza, ferir e matar seu semelhante e a si mesmo, produzir sintomas que marcam seu corpo, fazer escolhas que lhe causam dor e sofrimento. Freud já dizia que o homem carrega dentro de si três forças indestrutíveis: a agressividade, a pulsão de morte e a sexualidade. E nessas terras selvagens do inconsciente, pouco exploradas, o analista jamais será uma figura julgadora das atitudes, dos comportamentos, dos desejos e dos anseios de seu analisante. Muito menos será uma figura que dirá se tal coisa ou atitude é certa ou errada. Ele conduzirá o analisante a pensar, a refletir, a elaborar acerca de seu sofrimento e de seu posicionamento frente a ele.
O psicanalista deve por excelência, e mais do que isso, por extrema importância ocupar o lugar de vazio, de zero, de morto. Diríamos que ele será o objeto causa de desejo para o sujeito que embarcará em uma análise. É a via pela qual o discurso do analisante retornará com questionamentos, contradições, marcações, apontamentos, interpretações. Portanto um dos grandes fundamentos éticos em Psicanálise é atravessar o sujeito, ir além do maniqueísmo do senso comum que nos coloca no limiar entre o bem e o mal. Nossa subjetividade é extremamente complexa, vai muito mais longe. Há sempre algo mais a explorar. E é na ética dos desejos que embarcamos, analista e analisante, numa bela aventura que deixará ensinamentos para toda a vida.
É interessante ressaltar que a figura do analista não é de um modelo, nem de um mestre. Enquanto profissional, este tem o dever ético de pontuar, marcar a fala, fazer apontamentos, para que o sujeito encontre ou crie caminhos e alternativas criativas que o ajudem a trilhar novos rumos para si.
Ele ocupa o lugar de morto, porém, ativo. O analista ao manejar a transferência, não será aquele que atenderá prontamente as demandas de amor do sujeito, sua ética está em justamente frustrar, provocar e castrar. Parece estranho, mas isto possibilita grandes avanços.
A Psicanálise implica em renúncia à sugestão, e é a favor de uma intervenção ativa, com o objetivo de fazer o analisante encontrar o que é próprio de seu desejo. Tornar consciente o que estava nebuloso e obscuro e fazê-lo experienciar justamente aquilo que o incomoda ao trazer à tona, mas agora à luz de suas próprias elaborações e saídas inovadoras das situações em que está inserido. Outras vias, caminhos, possibilidades.
Uma questão importante a ser considerada pelo analista é o dever de respeitar toda a diversidade humana. Valores morais do analisante, religiosos, orientação sexual, interpretação da vida, cultura, opiniões políticas, jamais devem contaminar a escuta do psicanalista. Por mais que o analista tenha as suas convicções, pareceres, rituais, estes conteúdos devem se manter suspensos.
Por ocupar um lugar de semblante, muitas vezes o analista é visto como uma figura ‘fria’. Porém, é justamente este posicionamento que garantirá o desenvolvimento de uma análise. O desejo do analista é o que, em última instância, opera na prática da Psicanálise. É ético que cada analista investigue, em sua análise pessoal, o seu desejo. Se ele não atentar a este ponto, ou seja, passar a considerar o que seria ideal para seu analisante, isso impossibilitará que o desejo deste sujeito em análise se manifeste. Tudo então não passará de palavras vazias, conversa fiada e tempo perdido.
Este cenário realmente não pode acontecer. Fazer análise é estar em um tratamento especial e muito específico da subjetividade humana. Respeito e comprometimento com a teoria e a técnica são elementos basilares e inegociáveis.
Ao procurar um analista, figura esta que passará a fazer parte de sua história por um bom tempo, atente ao seu posicionamento e profissionalismo. E cuidado aos charlatões de plantão que prometem cura, bem-estar, equilíbrio emocional e tantas frases de efeito.
Ousar em se aventurar nos emaranhados do inconsciente, esteja advertido que tudo pode acontecer. E não há garantias. Certamente, o sujeito em análise sentirá os efeitos da palavra, mas somente ele tem acesso a sua verdade.
Bruna Rosalem
Psicanalista Clínica
@psicanalistabrunarosalem
www.psicanaliseecotidiano.com.br
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Psicanalista e professora. Natural de Campinas/SP, porém, atualmente reside em Balneário Camboriú/SC. Seu percurso na psicanálise começou na época do Mestrado, participando de dois grupos de estudo em Educação, Ciência e Psicanálise: Grupo PHALA (UNICAMP) e Grupo Universal (USP), desde então segue os estudos na Associação Psicanalítica de Itajaí, onde atua como professora. É mestra em Educação e Práticas Culturais (Unicamp) e Pós-graduada em Filosofia, Psicanálise e Cultura (PUC/PR). Realiza atendimentos e supervisão. Escreve para o Jornal Cultural ROL as colunas Psicanálise & Cotidiano, Cinema & Psicanálise e Crime & Psicanálise, sendo estas últimas em parceria com o escritor Marcus Hemerly. Também participa de Antologias, escrevendo contos e crônicas.