Bruna Rosalem: Artigo ‘Confinamento, abandono e morte no Colônia, maior hospício que o Brasil já teve’
COLUNA PSICANÁLISE E COTIDIANO
Falar que fulano é louco, sicrana é doida, talvez nos remeta a ideia de pessoas que expressam comportamentos no mínimo estranhos, descompensados, extravagantes, algo que destoa de uma certa “normalidade” dos diálogos e das atitudes perante a sociedade.
De certo modo, a temática da loucura nos é cara, pois nem sempre a pessoa tem de fato alguma patologia mental, desordem psíquica que a faz transitar entre a comunidade, causando estranhamentos e desconfortos. Ela pode ser simplesmente “diferente”.
Ousar, muitas vezes, pode ser loucura para uns, falar mais alto, cantarolar, dançar engraçado, tatuar-se, pintar os cabelos coloridos, usar roupas que não “ornam”, escolher um estilo de vida “fora dos padrões”, enfim, há inúmeras possibilidades de, a qualquer momento, sermos considerados loucos ou loucas por apenas seguir sonhos e realizar desejos.
No Brasil, nas décadas de 60 e 70 não foi diferente. Muitas vezes vagar pelas ruas, não possuir documentos, ser alcoólatra, se prostituir, gente que fazia enfrentamentos, principalmente quando o assunto era oposição política, mulheres traídas pelos seus maridos que as deixavam confinadas em casa, homossexuais, epiléticos, gente tímida ou triste demais, jovens grávidas, crianças invisíveis à família. Ou seja, pessoas consideradas incomodas e imprestáveis eram fortes candidatas à internação compulsória no Hospital Colônia, situado na cidade mineira de Barbacena.
Dados retirados do livro-reportagem de Daniela Arbex, “Holocausto Brasileiro” nos revela absurdas 60 mil mortes em um dos capítulos mais tristes e desumanos da nossa história. Mais de 70% dos internados não tinham de fato uma doença mental, e mesmo que tivessem alguma perturbação, não seria este o melhor caminho para tratar e cuidar.
Quando os considerados loucos chegavam ao Colônia, perdia-se a frágil identidade que ainda poderiam possuir. Tornavam-se o mais do mesmo, apenas números. Seus cabelos eram raspados, depois seus corpos despidos e seus nomes apagados.
Os então pacientes para o resto da vida, confinados entre os muros do hospício, perambulavam por aqueles espaços escuros, úmidos, fétidos, insalubres. Comiam ratos, bebiam a própria urina ou água de esgoto, dormiam ao relento no chão ou em amontoados de capim. Como se não bastasse tamanha negligência, eles ainda sofriam constantes torturas, violência e espancamentos. Relatos apontam que os eletrochoques eram tão fortes que ocasionava sobrecarga, fazendo com que a rede de iluminação do município caísse.
Ainda não acabou. Cerca de 30 bebês foram roubados de suas mães, pacientes do hospício. As mulheres passavam fezes em suas barrigas para que as enfermeiras não as tocassem, dessa forma, acreditavam que seus filhos fossem salvos. Ledo engano, ao nasceram eram arrancados de seus braços e doados a diversas famílias. Jamais veriam seus rostos.
Havia muitas maneiras de sucumbir naquele lugar pavoroso. Fome, frio, doenças infectocontagiosas ou ainda, por não resistirem aos choques e as torturas. O hospital Colônia de Barbacena em sua maior lotação, confirmava 16 mortes por dia. Os cadáveres eram muito lucrativos para os seus administradores, pois eram vendidos para 17 faculdades de medicina do país.
Se a “safra” de corpos estava em quantidade demasiada e o mercado não suportava comprar, outra ideia surgia: decompor os corpos em ácido, no pátio, aos olhos de todos, para que as ossadas fossem comercializadas. Neste sistema valioso, tudo era aproveitado. Ninguém questionava. Afinal, quem eram aqueles seres senão peças, pedaços ou instrumentos que poderiam ter alguma serventia mortos? Já que em vida eram menos que nada.
Algumas vezes, os corpos enterrados subiam repentinamente à superfície provocando indignação à população proporcional ao tempo que ficavam expostos, ou seja, tão breve que logo pedras empurravam-nos de volta ao solo e ao completo esquecimento. Nada acontecia. Nunca estiveram ali. Além de morrer pelas inúmeras moléstias e violência diária, morriam por invisibilidade.
Matérias foram feitas sobre o Colônia. No ano de 1961, por exemplo, o fotógrafo Luiz Alfredo e o repórter José Franco contaram a rotina do hospital na revista O Cruzeiro. Diziam que lá era a verdadeira “sucursal do inferno”.
Em 1979 dois trabalhos se destacaram na mídia brasileira, a fotógrafa Jane Faria e o repórter Hiram Firmino publicaram no jornal Estado de Minas a reportagem “Os porões da loucura” e “Em nome da razão”, documentário de Helvécio Ratton, tornou-se símbolo da luta antimanicomial. A fala de um dos psiquiatras que trabalhava no hospital relatada no livro de D. Arbex, é emblemática: “O que acontece no Colônia é a desumanidade, a crueldade planejada.
No hospício, tira-se o caráter humano de uma pessoa, e ela deixa de ser gente. É permitido andar nu e comer bosta, mas é proibido o protesto qualquer que seja a sua forma”. O médico foi demitido pouco tempo depois.
Atualmente restam alguns poucos sobreviventes que tentam tocar a vida como podem. Cheios de traumas, vazios, tristezas, manias e rituais que adquiriram durante o longo período de internação. Muitos deles vivem em residências terapêuticas e são assistidos por equipes multidisciplinares. O Hospital Colônia de Barbacena encerrou suas atividades, ou poderíamos dizer, suas aberrações no final dos anos 80.
A loucura é tema amplo de debate e discussões até hoje. Embora não tenhamos mais hospitais aos moldes do Colônia, reavivar a temática acerca do tratamento psiquiátrico no Brasil se faz urgente e necessária. O livro-reportagem “Holocausto Brasileiro” traz à tona um episódio amargo e de difícil digestão testemunhado pela sociedade brasileira. Um verdadeiro genocídio com a conivência de médicos, funcionários e pessoas da época.
Milhares de mortos ficaram para a história e os sobreviventes daqueles anos de horror e caos, hoje podem contar, através de sua fala outrora emudecida, seus enredos como verdadeiros protagonistas de um novo roteiro.
Bruna Rosalem
Voltar: http://www.jornalrol.com.br
- Nomadland: uma reflexão sobre a transitoriedade - 10 de outubro de 2024
- O vazio - 15 de agosto de 2024
- Deitar-se no divã: uma possibilidade de reescrever a própria história - 30 de junho de 2024
Psicanalista e professora. Natural de Campinas/SP, porém, atualmente reside em Balneário Camboriú/SC. Seu percurso na psicanálise começou na época do Mestrado, participando de dois grupos de estudo em Educação, Ciência e Psicanálise: Grupo PHALA (UNICAMP) e Grupo Universal (USP), desde então segue os estudos na Associação Psicanalítica de Itajaí, onde atua como professora. É mestra em Educação e Práticas Culturais (Unicamp) e Pós-graduada em Filosofia, Psicanálise e Cultura (PUC/PR). Realiza atendimentos e supervisão. Escreve para o Jornal Cultural ROL as colunas Psicanálise & Cotidiano, Cinema & Psicanálise e Crime & Psicanálise, sendo estas últimas em parceria com o escritor Marcus Hemerly. Também participa de Antologias, escrevendo contos e crônicas.