COLUNA PSICANÁLISE E COTIDIANO
Bruna Rosalem: Artigo ‘Sobre envelhecer’
É inevitável: se tivermos sorte, um dia envelheceremos. Apesar de querermos associar a velhice com a chegada mais próxima da morte, isto nada quer dizer, pois o final da vida pode vir muito antes, seja na infância, seja na juventude. De qualquer maneira, o fim virá sem aviso prévio para todos nós.
O fato é que em nossa sociedade das aparências, ninguém quer falar do velho ou da velha. Chovem as ofertas dos métodos rejuvenescedores, das plásticas, das aplicações do famoso ácido hialurônico (o conhecido botox), das lipoaspirações, das harmonizações faciais, e muitos outros procedimentos que prometem uma repaginada naquele velho corpo ou naquele rosto cansado, no alcance de uma nova imagem para ser admirada e contemplada diante do espelho.
Quanto mais distante dos sinais do envelhecimento, mais sucesso, maior felicidade. Como se fosse possível lutar contra o tempo que nos lembra a cada ano nossa envelhescência.
Apesar de conscientes que um dia deixaremos este mundo, inconscientemente nosso psiquismo não opera sob uma lógica cronológica, ele é atemporal e obedece a si mesmo. Nele, não existe tempo antes, durante, depois.
O inconsciente não envelhece nunca e ainda faz questão de pulsar reminiscências da infância em encenações, falas coerentes e incoerentes, atuações, repetições. Ser um sujeito velho nem sempre significa amadurecer. Há idosos em corpos jovens e jovens em corpos velhos.
Corpo e psiquismo não se acompanham mutuamente. Podem ser muito discrepantes, por sinal. Para muitos, olhar-se passa a ser um exercício penoso ao se deparar com os rastros dos anos que se passaram marcados por inúmeras perdas de entes queridos e vivência do luto, traumas muitas vezes não tratados, não escutados, esquecimentos, doenças superadas ou em tratamento, a eventualidade de ter que viver em sua própria companhia, abrindo as portas para a solitude.
Ainda há que se lidar com as marcas deixadas no real do corpo, alterações estéticas inerentes, ainda que negadas. Rugas e excesso de verrugas, expressões na pele mais marcantes, manchas, queda de cabelos, dores diversas, movimentos mais difíceis de realizar e menor mobilidade.
Vista cansada, uso de óculos para ver de longe ou de perto. Uso frequente de colírio, pois o olho já não consegue se lubrificar sozinho. Às vezes, uma bengala ajuda a se sustentar durante uma simples caminhada, mas que exige um esforço tremendo.
Cremes com colágeno, reforço de vitaminas, alimentação mais restrita, cálcio para os ossos que estralam o tempo todo. Coluna torta. Atividade sexual mais espaçada, vagarosa. Menos horas de sono. Mais tempo livre.
Mas que tempo? Este elemento imaterial, intocável, quase como uma entidade, mas que faz presença constante. Como diria Cazuza: “O tempo não para.” Quando nos damos conta, já se foram vinte, trinta, quarenta anos. E como disse no começo, com sorte, ainda estamos vivos. Porém é preciso sustentar um corpo em processo de degenerescência e dos possíveis enfraquecimentos dos laços sociais e afetivos.
Na sociedade do espetáculo, ser velho é estar à margem. Com frequência, no lugar dos esquecidos. Do abandono, do ostracismo, do ultrapassado. O velho não pode curtir a vida porque já é tarde demais para fazer alguma coisa e muito menos começar algo novo.
Mesmo que ainda “há tanta vida lá fora”, como diria Lulu Santos. Sorte ou azar, cada um que pense como quiser, o psiquismo não se importa quantos aniversários já completamos. Ele continuará pulsando e desejando. E desejar é sinal de vida!
Se a vida tem algum sentido, achemos o nosso. Do nascimento à morte, é neste ínterim sem adivinhações ou bola de cristal que seguiremos. O sentido que realmente importa é aquele que cada sujeito dá para si em cada breve momento da sua passagem por este planeta.
Aquilo que semeia, colhe e deixa para os demais. A cada crise, um aprendizado pode ser elaborado e novas maneiras, arranjos e identidades podem ser construídas para ressignificar as experiências. Assim não sobrará espaço para adoecimentos físicos, psíquicos, pensamentos e ideias depressoras.
Nas belas palavras de Guimarães Rosa, “penso que chega um momento na vida da gente, em que o único dever é lutar ferozmente para introduzir no tempo de cada dia, o máximo de ‘eternidade’”. Então, procure criar e recriar sem limites. Ame e permita ser amado. Afinal, cada um envelhece à sua maneira.
Guimarães Rosa pode estar nos dizendo que ter o coração batendo e estar respirando nem sempre são sinais de estar vivo, mas que cada instante é preciso significar a vida, ‘eternizar’ as vivências, sentir os quereres, os propósitos, os anseios…
Te convido a refletir sobre as possibilidades de enxergar a vida na velhice, sem medo. Apenas mova-se e atravesse este fantasma.
Bruna Rosalem
Contatos com a autora
Voltar: http://www.jornalrol.com.br
- Nomadland: uma reflexão sobre a transitoriedade - 10 de outubro de 2024
- O vazio - 15 de agosto de 2024
- Deitar-se no divã: uma possibilidade de reescrever a própria história - 30 de junho de 2024
Psicanalista e professora. Natural de Campinas/SP, porém, atualmente reside em Balneário Camboriú/SC. Seu percurso na psicanálise começou na época do Mestrado, participando de dois grupos de estudo em Educação, Ciência e Psicanálise: Grupo PHALA (UNICAMP) e Grupo Universal (USP), desde então segue os estudos na Associação Psicanalítica de Itajaí, onde atua como professora. É mestra em Educação e Práticas Culturais (Unicamp) e Pós-graduada em Filosofia, Psicanálise e Cultura (PUC/PR). Realiza atendimentos e supervisão. Escreve para o Jornal Cultural ROL as colunas Psicanálise & Cotidiano, Cinema & Psicanálise e Crime & Psicanálise, sendo estas últimas em parceria com o escritor Marcus Hemerly. Também participa de Antologias, escrevendo contos e crônicas.
Tenho um vizinho com 92 anos, talvez a parte mais difícil de conviver com ele seja a sua prodigiosa memória, de resto, ele é fantástico. Há outra senhora, 87 anos, também com uma memória espetacular, costuma dizer que “quando se tropeça, damos um passo para a frente”. Em compensação, tenho outra vizinha, 82 anos, que não faz nada, não sabe nada e, quando penso, lembro que ela era assim quando a minha mãe era viva (a minha mãe faleceu em 1988), ou seja, não foi a idade, o tempo vivido que a transformou.
Estou com 60 anos e – segundo dizem, as mulheres da minha família “saem do ar” na casa dos 62/65 anos – tenho boa memória, fiz a opção pela solitude, que, às vezes, cobra o seu preço, mas tenho um ócio ultra-criativo: leio e escrevo muito. Enfim, por vezes, me pergunto como as pessoas me veem, porque, com 60 anos, ainda ajo como se tivesse 35, 40 anos. Gostei muito de ler o seu texto.
Elaine, que ótimas observações.
Realmente falar em velhice, para a maioria, é assunto quase que esquecido ou mesmo negado.
Fico feliz que meu texto te provocou reflexões.
Abraços!