Bruna Rosalem
COLUNA PSICANÁLISE E COTIDIANO
‘Diga-me o que vês e eu te direi quem tu és: Hermann Rorschach e as manchas de tinta’
Um suíço apaixonado pela teoria freudiana, entusiasta colecionador de cartões com manchas de tinta (klecksografia), nascido no ano de 1884 em Zurique, médico psiquiatra, irmão mais velho dos três filhos de Ulrich Rorschach. Em sua breve trajetória, dedicou-se a estudar e elaborar ferramentas de interpretação inspiradas em um dos conceitos mais importantes da teoria psicanalítica, a associação livre, ao propor que o paciente falasse aquilo que visse à mente sobre o que enxergava nas manchas de tinta dispostas simetricamente em pranchas. Sua curiosidade pelas manchas se deu, a princípio, com pacientes esquizofrênicos que faziam associações de maneira muito peculiares e diferentes de pessoas que não apresentavam psicoses. Ele queria demonstrar que ao interpretar as manchas, era possível desvendar conteúdos inconscientes.
Aos 37 anos, vítima de um quadro agravado de peritonite, sofrendo de fortes dores abdominais, Rorschach encerra sua jornada pela medicina, deixando esposa, dois filhos e um livro intitulado ‘Psicodiagnóstico’ sobre suas descobertas, experimentos com pranchas de tinta e proposições. Diante de tanto trabalho árduo, é lamentável que o médico não conseguiu antever o impacto de sua obra ao longo do tempo. Após dez anos da publicação, o livro lançado em 1921 que antes permanecia restrito a um pequeno grupo de pesquisadores na Suíça, expandiu de maneira significativa na Europa e nos Estados Unidos.
Originalmente, Rorschach utilizava 40 pranchas diferentes, mas ao editar o livro para publicação, este número foi reduzido para 15, devido aos custos. Hoje em dia, a aplicação prevê 10 pranchas e somente psicólogos habilitados, com aprofundado conhecimento e estudo neste teste de personalidade podem aplicá-lo. Além das questões éticas que incidem sob os aplicadores, os profissionais devem interpretar os resultados de acordo com o Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos.
Em 1939, foi criado o Instituto Rorschach, quatro anos depois foi realizado o 1º Congresso de Rorschach e na década de 40, foi fundada a Sociedade Internacional de Rorschach (1949). Mais de cem anos já se passaram e atualmente o teste de Manchas de Tinta ganhou o mundo com novos sistemas de codificação e interpretação, sendo utilizado em inúmeros países para diferentes abordagens e fins, seja teste de personalidade para contratar em empresas ou funções específicas – como foi o caso da Segunda Guerra Mundial para selecionar soldados e pilotos -, seja para traçar perfis criminosos em investigações ou até mesmo para dizer se o sujeito encarcerado está apto ou não para contemplar o regime aberto ou semiaberto.
Um exemplo emblemático das crônicas policiais brasileiras foi que a mandante dos assassinatos brutais de seus próprios pais, Suzane von Richthofen, realizou o Teste das Manchas de Tinta e segundo relatos, a moça não obteve êxito para deixar a prisão, pois suas descrições e interpretações das pranchas revelaram uma pessoa que oferecia, à época, riscos a sociedade. Ela permaneceu presa até cumprir pelo menos vinte anos em cárcere privado.
Ainda que bem aceito em várias instituições, o teste projetivo das Manchas de Tinta costuma receber muitas críticas acerca de seus resultados. Mesmo que as manchas não sejam aleatórias, são, a propósito, projetadas e codificadas em suas especificidades e características, parte da comunidade médica afirma não ser crível que a interpretação de manchas possa perfilar personalidades, conjecturar futuras ações do sujeito e possibilitar afirmar o que ele é ou não é.
De outro viés, a ciência permanece investigando a eficácia do teste, publicando resultados e pareceres que em sua maioria são positivos. É comprovado que até os dias atuais, o teste do aspirante médico, sonhador, amante da arte, que desejava aprimorar cada vez mais seus estudos e elevar sua criação a outros patamares, tem sido um dos métodos de avaliação psicológica mais difundida e citada em pesquisas científicas, além de sua aplicabilidade estar conquistando mais adeptos.
Uma doença silenciosa foi capaz de ceifar precocemente a vida do brilhante psiquiatra, porém seu legado continua nos provocando curiosidades, interrogações e fascínio pelos conteúdos coloridos ou preto e branco das manchas de tinta e o que elas poderiam dizer sobre nós.
Bruna Rosalem
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Psicanalista e professora. Natural de Campinas/SP, porém, atualmente reside em Balneário Camboriú/SC. Seu percurso na psicanálise começou na época do Mestrado, participando de dois grupos de estudo em Educação, Ciência e Psicanálise: Grupo PHALA (UNICAMP) e Grupo Universal (USP), desde então segue os estudos na Associação Psicanalítica de Itajaí, onde atua como professora. É mestra em Educação e Práticas Culturais (Unicamp) e Pós-graduada em Filosofia, Psicanálise e Cultura (PUC/PR). Realiza atendimentos e supervisão. Escreve para o Jornal Cultural ROL as colunas Psicanálise & Cotidiano, Cinema & Psicanálise e Crime & Psicanálise, sendo estas últimas em parceria com o escritor Marcus Hemerly. Também participa de Antologias, escrevendo contos e crônicas.