Ella Dominici: ‘O drama do apartamento da Berrine’
A infância se passou em Minas ao filho da professora de História e aos seus quatro irmãos, cinco no total. Foram criados pela dona Lázara, moça naquela época e que se manteve solteira. Ela os viu nascer, era uma negra dedicada ,quase mãe…mais que mãe .
Por sua vez a mãe muito moderna para as décadas de cinquenta a sessenta, dirigia, fumava…uma feminista que discutia a época em suas excelentes aulas.
Hugo veio para São Paulo , estudar sociologia na USP, morava no apartamento cedido a duras custas pelo pai na avenida Berrine.
Creio que fosse por volta de 1968 quando na faculdade se drogava, aliás todos os amigos, irmãos e alguns primos lá de Minas .
Provava-se tudo e corria as avenidas de São Paulo no engajamento político de revolta e liberdade…e em busca do LSD.
Era um conjunto de cinco prédios, cada qual pintado de uma cor. O dele era azul. Elevadores par e ímpar, curioso ter que acertar e não ir parar no andar errado. Nesse dia errou o andar e subiu um de escada.
Chegou e olhou pelo vitral da sala, aqueles de correr, ouviu o ruído de algo enferrujado, que emperra, precisava lixar e pintar. Faltava manutenção já que não era dedicado.
Pela janela podia-se ver a praça Sanson que ficava bem abaixo, um campinho de futebol e uma área de lazer para crianças. Hugo costumava levar a Leica, sua cadelinha pinscher 2, o nome dado justifica o gosto e paixão pela fotografia, à qual ele era obstinado.
Sua preciosidade era uma ‘Leica M 10-R’ que comprou usada na rua Augusta. Sua namorada.
Gostava do apartamento miúdo de 70 metros, para ele era até grande e acomodava suas tralhas e seus livros Marxistas e de Weber, muita literatura e história, além da pilha de discos e LP do Chico que cantavam canções censuradas. Tudo no Hugo era censurado. Anos torturados sem esquecimento.
Todos os irmãos disputavam esse apartamento, mas ficara nele até o fim.
Não sei porque lembrou- se do tempo que passara em Berlim,onde recolhia canecas de cerveja que deixavam pelos bancos da praça. Fazia um valor suficiente para se manter vivo por ali.
Doía- lhe a cabeça agora. Coberta por uma vasta e desgrenhada cabeleira que disfarçava o cérebro que parecia oco.
A cabeça misturando nebulosamente os fatos que soubera pela Lázara, não por terem ligado, mas ele teria feito um telefonema, o que nunca fazia, pois interurbanos eram caríssimos; além de que os vínculos eram cada vez mais frágeis. Parece que ninguém existia…a mãe morrera drasticamente num acidente no trevo da entrada da cidade mineira. Para que viver, se nem os ideais de liberdade podiam lhe libertar o espírito inquieto. E por que morrer se a luta era a própria vida.
O pavor aumentava, ele inexistia nos corredores sombrios da existência. A droga lhe galardoava como o nada.
E neste devaneio meio sonho, meio real, ouviu um ruído no hall de entrada, pisadas fortes e vozes masculinas, pensou no que poderia ser, lembrando- se dos últimos acontecimentos com famílias de amigos engajados…
A porta da sala foi arrombada?
Desespero total, mais uma vez seria detido, e por quanto tempo agora, e a tortura para confessar o que? será que são eles, ou não? A dúvida cada vez mais se expande, de onde viria esse turbilhão?
A tontura o tomava, eram os efeitos adrenérgicos em seu peito e corpo…
Olha para a janela que precisava de reparos, num relance lembra- se de Ivete Mendes e seus compatriotas e…. de Yunens Paiva… um dia contaria esta façanha ao Marcelo, filho do amigo…
Procura vasculhando com os olhos pela Leica, agarra a peça e freneticamente a pendura no seu pescoço. Onde quer que fosse ela teria que acompanhá- lo .
Não existe outra saída, não tem escolha senão a fuga antes que o tomassem e o levassem, isso já seria demais para suportar…
Salta do décimo primeiro andar. Salto livre.
A gangorra do parquinho balançou afundando a terra ao suportar o peso de seu corpo.
Virou fotógrafo jornalístico .
Ella Dominici
Contatos com a autora
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Natural de São Paulo (SP), é endodontista por profissão e formada no curso superior de Língua e literatura francesa. Uma profissional que optou por uma ciência da área da saúde, mas que desde a infância se mostrava questionadora e talentosa na Arte da Escrita, suscitando da parte de um mestre visionário a afirmação de ela ser uma escritora nata, que deveria valorizar o dom que recebera. Atendendo ao conselho recebido, na maturidade Ella cumpre o vaticínio e lança o primeiro livro solo de poemas (Mar Germinal), rompendo com a escrita meramente contemplativa, abraçando fragmentos, incertezas e dualidades para escancarar oportunidades a si como ao outro. Dribla o autoritário tempo, flagra mazelas psicológicas em minúsculas e múltiplas impressões exteriores e internas. É membro da AMCL – Academia Mundial de Cultura e Acadêmica Internacional da FEBACLA. Coautora de várias antologias. Publica na Revista Internacional The Bard e se inscreveu no 8º Festival de Poetas de Lisboa, participando da antologia promovida pelo evento