Desligado do Quinze de Novembro, por insistência de um colega de classe e da república Maloca, José Carlos Maschietto, aceitei o convite para atuar por algum tempo no Capivariano, equipe profissional que disputava uma das séries inferiores do campeonato paulista.
Aos domingos, pela manhã, embarcava no trem do ramal da Sorocabana em Piracicaba. Almoçava na casa do seu Vitório, pai do meu colega, defendia a equipe de Capivari, regressava com o dinheiro que me pagavam. Não sei se pelo serviço prestado era pouco ou muito. Sei apenas que me bastava para as despesas da semana.
Nessa época, quando o amigo Vicente, motorista de caminhão que fazia a rota Osasco – Piracicaba chegava para me entregar o dinheiro da mesada amealhado com sacrifício pelo Elzo, o irmão que gerenciava o Bar do Povo, eu agradecia e mandava dizer que não precisava. Podia devolvê-lo à família, cujas dificuldades financeiras eram atrozes.
Numa das viagens de regresso de Capivari, à noite, entre os poucos passageiros que dormitavam no vagão escuro, aproximou-se uma moça que me deu o prazer da companhia. Falou-me que todo domingo viajava naquele horário. Retornava de visita à família, para o reencontro do marido com quem vivia em Piracicaba. Casada havia pouco tempo, não se acostumava longe da família. Viajava todos os fins de semana. Tinha saudade dos seus.
No domingo seguinte, encontrei-a de novo. Percebi que estava ansiosa pela minha companhia. Sentamo-nos, no mesmo lugar, conversamos com animação e sem cerimônia. Era como se já nos conhecêssemos de longa data. A atração recíproca e impetuosa levou-nos à troca de carícias e de beijos apaixonados, ali mesmo, no vagão vazio, mergulhado na penumbra.
Ao desembarcamos, subimos a Rua Quinze de Novembro, nosso caminho. Lembro-me de tê-la ouvido dizer que morava pelos lados do Bairro Alto, nas imediações da república Esplanada, alguns quarteirões acima da Maloca. Não me deu, entretanto, seu endereço nem disse se morava na Rua Quinze.
Quando me despedi e entrei, tive a sensação de que o portão, que eu havia tido o cuidado de fechar, abriu-se atrás de mim. Voltei-me e percebi que a companheira de viagem me estendia a mão para subir a escada e me seguir os passos. Naquela noite, ela me confidenciou que, apesar de pouco tempo de casada, não vivia bem com o marido. Por causa dessa confissão achei que me propunha uma relação duradoura.
No domingo seguinte, depois do jogo, despedi-me mais cedo dos anfitriões, e corri para a estação. Ao chegar não a vi. Entrei ansioso no mesmo vagão em que a conhecera: ela não estava. Percorri os vagões que, se bem me lembro, eram apenas três ou quatro e não a encontrei. Sentei-me no mesmo lugar do domingo anterior, na esperança de vê-la entrar, braços estendidos, correndo ao meu encontro. Ela não apareceu.
O trem moveu-se lentamente, enquanto eu esticava o pescoço para fora da janela. Fixei o olhar na estação que se afastava, mergulhando na penumbra. Ninguém na plataforma escura. A princípio, me senti inconformado. Mas, pensando bem, não havia motivo para frustração. Algum imprevisto deveria tê-la impedido de viajar. Algum motivo relevante, pensei, enquanto me recostava para cochilar. Era isso. Não podia haver outra explicação. No domingo seguinte, iríamos nos encontrar de novo e teríamos muito assunto para conversar.
Os domingos foram se sucedendo e nunca mais a encontrei naquelas viagens, cada vez mais longas e cansativas. Desistira de viajar? Mudara de horário com o intuito de me evitar? Mas por quê? Tudo acontecera espontaneamente. Não houve malícia, nem premeditação. Nada que justificasse sua ausência.
Nessa época, cheguei a faltar a algumas aulas e interromper horas de estudo para ficar na varanda da Maloca a espreitar a rua. Olhava atentamente quem vinha e quem ia, na esperança de vê-la passar. Às vezes, tinha a impressão de que a via, ao longe. De perto, percebia que era engano. Quando se deixam levar pelos impulsos do coração os sentidos se iludem.
Da varanda da Maloca meus olhos continuavam a se mover: primeiro à direita, para baixo, no rumo da estação da Sorocabana; em seguida, à esquerda, para cima, na direção da escola normal Sud Menuci. Por mais que procurasse, nunca a vi subindo ou descendo a Rua Quinze. Jamais voltei a encontrá-la. Assim, nunca hei de ter certeza a respeito de seus verdadeiros sentimentos, do seu destino e dos motivos que a levaram a se afastar de maneira tão estranha e inesperada.
Da relação fugaz, restou-me alguma recordação. Lembro-lhe o talhe: era esbelta; do semblante não me recordo, mas tenho a impressão que era loira; não sei dizer se era bonita, porém, delicadas e quase imperceptíveis estrias brancas davam-lhe, aos olhos, de tonalidade azul, brilho especial e vivacidade única. Parece-me que não era de muito falar, mas se expressava com os encantos do olhar e a malícia do sorriso. Não era triste embora demonstrasse certo sentimento de angústia.
Ah! Faltou-me revelar-lhe o nome: será que perguntei?… Será que me foi dito?
* Do livro Sonhar é Preciso – Comunidade e Política nos Tempos da Ditadura.
Guaçu Piteri – Edifieo (p. 87)