Elaine dos Santos: ‘Sobre loucura e preconceito’
Em O Alienista, conto de Machado de Assis, tem-se a história do médico Simão Bacamarte, que abriu um consultório no interior, na cidade de Itaguaí.
Na cidade, conheceu e casou-se com dona Evarista, uma viúva. O principal interesse do médico era ter filhos e ela pareceu-lhe uma “boa parideira”.
Com o passar do tempo, Bacamarte abriu um manicômio na cidade, em que internaria pacientes com algum grau de desvio comportamental. O problema é que o médico passou a enxergar loucura em todos os habitantes da cidade.
Embora o barbeiro Porfírio tenha liderado um movimento contra o médico, porque os cidadãos de Itaguaí temiam que todos fossem considerados loucos, o próprio Barbeiro, que tinha interesses políticos, acabou aliando-se a Bacamarte e as internações continuaram.
Eis que João Pina, opositor do Barbeiro, conseguiu a sua deposição, mas, quando quase 75% da cidade estava internada, Simão Bacamarte voltou atrás e liberou todos os internos.
Na sequência, tendo revisto a sua teoria, mandou internar Galvão, um vereador da cidade. Passado um tempo, liberou novamente os internos e promoveu a sua internação.
O texto de Machado de Assis esbanja ironia (talvez para o leitor menos iniciado, tenha apenas a possibilidade do riso, mas há nuances críticas à nossa sociedade).
A ideia de escolher uma mulher apta a ter filhos saudáveis, é recorrente em nossa literatura, como em São Bernardo, de Graciliano Ramos, quando Paulo Honório reúne as mulheres jovens da cidade para escolher aquela poderia ofertar-lhe um herdeiro.
Os conchavos por interesses políticos ou econômicos remontam à literatura de todos os tempos, Hamlet, de William Shakespeare, é um exemplo paradigmático.
A loucura permeia todas as relações em nossa sociedade em todos os tempos: comportou-se fora dos ditames de determinada sociedade em determinada época, é louco.
Lembro-me de Bernadette Soubirous, a menina pobre e doente, que, em 1858, em Lourdes, no interior da França, viu e conversou com a Imaculada Conceição. Ela foi ameaçada, segregada, silenciada. Bernadette precisava ser desacreditada e, como tal, disseram que era louca.
A sociedade burguesa instituiu que a mulher deve ser tutelada pelo pai, pelo marido ou, quando este falece, pelo filho mais velho.
Como escreveu Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Na contramão dessas ideias, em tempos idos, a vida já foi diferente (ou nem tanto!). Os meus alunos de Literatura Portuguesa divertiam-se quando lhes lembrava que o Latim falado em Portugal não era o Latim culto de Roma, os doutos não participavam das invasões.
Quando os romanos invadiram a antiga Hispânia (Portugal e Espanha), seguiram soldados, aventureiros e prostitutas para a ocupação daquela região.
Quando o Brasil passou a ser ocupado, vieram aventureiros, degredados (presos) e prostitutas, portanto, a língua portuguesa que adentrou o Brasil era o português falado pelo povo.
Os jesuítas que chegaram aqui vieram, de fato, para catequizar os índios, mas vieram também para moralizar os costumes, realizar casamentos, batizar crianças nascidas em pecado.
Erico Verissimo, em O tempo e o vento, apresenta Pedro Missioneiro como ancestral mítico do gaúcho, filho de uma indígena e um tropeiro paulista, provavelmente casado, que a abandonara no caminho.
Qual o meu intento aqui com essa sucessão de fatos históricos e literários?
A sociedade contemporânea brasileira ainda guarda resquícios de conservadorismo, sobretudo em regiões interioranas: mulher, preferentemente, assume o nome de família do marido; deixa a família dela para residir com ele; as crianças recebem, com muita frequência o nome da família do pai etc.
E quem não casa? Sim, este texto é um libelo em defesa das mulheres que não se casaram, não tiveram filhos e estudaram, construíram as suas vidas profissionais independentes.
Somos loucas, porque estudamos; viajamos; adquirimos conhecimento, certa liberdade; solitude (há quem diga que é solidão), definimos os rumos das nossas vidas. Dispensem-nos do vosso preconceito, não nos atraí a vossa vida, mas não menosprezem as nossas escolhas.
Todos nós somos seres únicos, com experiências únicas. Se algumas mulheres experimentaram a maternidade, isso não as faz nem melhores nem piores. Até porque muitas mulheres gostariam de serem mães e o próprio organismo as impede.
Por outro lado, muitas mulheres que não foram mães têm tantas experiências para partilhar. Talvez respeito fosse o meio termo para intermediar as relações sociais.
Elaine dos Santos
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Natural de Restinga Seca (RS), é licenciada em Letras, Mestre e Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Tem formação em espanhol pela Universidad de La Republica, Montevidéu. Possui 29 artigos acadêmicos publicados em revistas nacionais na área de Letras com classificação Qualis, além de participação em eventos com trabalhos completos e resumos. É autora do livro Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro mambembe, adaptação de sua tese de doutorado, e coautora em outros livros versando sobre Direito, História, Educação e Letras. É revisora de textos acadêmicos, cronista com textos publicados em jornais regionais e estaduais e participação em mais de 80 antologias.