Evani Rocha: Conto ‘A velhinha morta’


Dona Dolíria morreu na faixa de pedestre. Ela queria apenas atravessar a rua com sua cestinha de legumes. Mas tinha alguém mais apressado que Dona Dolíria, e, quis passar na faixa enquanto ela atravessava. Não deu outra. Atropelou a pobre senhora. Os legumes e verduras ficaram espalhadas na pista. Mas Dona Dolíria caiu mortinha, exatamente na faixa. Nenhum carro podia passar. O trânsito ficou congestionado. O apressado que a atropelou, sequer parou para prestar socorro, o que seria em vão, a batida foi muito violenta, ela iria morrer mesmo antes de chegar o socorro, como de fato morreu. As pessoas curiosas desciam de seus carros parados na pista para espiar a morta. Ela estava perfeitinha. Nada sangrava, nada de fratura exposta, porém os legumes e verduras estavam amassados, ou em picadinhos. Os tomates e beterrabas esmagados deixavam dois riscos vermelhos arroxeados no asfalto, marcando o rastro das rodas do veículo. Muitos tapavam a boca, de súbito, crendo que a mulher tinha esgotado todo sangue do seu corpo. Mas logo percebiam no rosto da vítima um semblante sereno, plácido e até corado. Suas pernas estendidas, juntinhas, exibiam o solado das sandálias novas de couro, recém compradas. Os braços envoltos pela alça da cesta, em um dos lados do corpo. Dedos cruzados deixavam à mostra um anel de ouro 18 quilates com uma grande pedra de brilhante. Os cabelos, muito grisalhos e arrumados num coque, presos com uma presilha ‘bico de pato’, decorado com um laço branco de tafetá. Nenhum fiozinho sequer de cabelo escapava daquele coque.
Todos estavam atônitos. Olhavam-se, indagando se a mulher estava realmente morta.
— Não se aproximem! Por favor! — recomendava e gesticulava muito um guarda de trânsito que, coincidentemente, estava próximo ao local.
— Alguém já chamou o SAMU? Minha nossa senhora! – disse uma mulher descabelada, que descera de uma motocicleta.
— Sim, sim! Já solicitamos o SAMU, mas pelo que foi averiguado, não há mais nada a fazer. Ela já passou dessa pra melhor… — falava com um ar zombeteiro, o homem de um carro parado ao lado.
As pessoas se engalfinhavam, tentando ultrapassar o cerco para fotografar ou filmar o corpo de Dona Dolíria. Pisavam em repolho, pepino e tomates esmagados, chutavam cebolas, que ainda rolavam no asfalto.
O povo, aglomerado ao redor do corpo, parecia menos impactado e penoso com a situação e mais preocupado em fazer uma foto ou um vídeo da vítima, para lançar, de imediato, nas redes sociais. O Sol da manhã ardia sobre o asfalto, o suor pingava da testa dos guardas que faziam o cerco ao redor da morta. Eram muitos clics de todos os lados. Uma ou outra pessoa soltava uma exclamação:
— Oh! Ela nem parece estar morta! Está tão coradinha!
— Pois é… como pode, que tipo de pessoa maldosa é capaz de atropelar uma pobre velhinha, assim, na faixa de pedestre!?
Acrescentou outra:
— Nem sequer parou para dar assistência! Isso é uma crueldade com o próximo!
Nesse momento, chegou um homem de meia-idade, moreno claro e magro, vestido de jaleco branco e gravata de bolinha. Usava uma boina preta caída sobre um dos olhos. Parecia desesperado, falava alto e pedia para se aproximar da vítima:
— Saiam! Saiam da frente! Sou filho da vítima!
A roda foi abrindo-se para dar passagem ao homem, o qual parou ao lado do corpo da mulher, pôs as mãos na cintura e disse, impaciente:
— Chega mamãe! Já chega, pode levantar daí! Você já ficou famosa! Está passando em todos os telejornais! Prejuízo foi meu de ter que lavar a lambuzeira de legumes no meu carro!
A velha fincou os calcanhares no chão e levantou-se de uma só vez! Batia as mãos na roupa, para limpar o pó do asfalto.
— Você é um filho ingrato! Paguei-lhe muito bem para isso! Não estava combinado vir aqui atrapalhar minha imagem!
As pessoas em volta filmavam e fotografavam tudo. Houve quem colocou como título de uma postagem: “A anciã atropelada na faixa de pedestre ressuscitou milagrosamente”.
Ivani Rocha
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Evani Rocha, natural de Chapada dos Guimarães (MT) é bióloga e professora da rede pública há 23 anos, com pós-graduação em Educação, especializada em Literatura Brasileira. Na área literária é poetisa, escritora e autora dos livros: Retalhinhos (Poesia, 2020) e Folhas de Outono (Contos, lançado na Bienal/Rio 2023). Na área acadêmica, é Acadêmica Internacional da FEBACLA – Federação Brasileira dos, entidade da qual recebeu o título Embaixadora Cultural da Paz. Apaixonada pelas artes, em especial a pintura e a escrita, Evani Identifica-se como uma pessoa ligada umbilicalmente à natureza, onde passou boa parte de sua infância. As artes e a natureza são sua fonte de inspiração, motivo pelo qual sua pintura e escrita têm uma voz que ecoa, quase sempre, desse lugar comum.
Gostei do conto, Evani! Em relação à velinha, considerando a idade, há de se dar um *des* conto para o que ela fez!
Sim! Nos dias atuais há até jovens fazendo loucuras para ganhar fama, tendo em vista que as tragedias viralizam na internet ou ganham manchetes nos jornais, infelizmente.
Gratidão por comentar, nobre amigo e editor!