Ivete Rosa de Souza: Crônica ‘Bordando histórias’
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08:25 PM
Sinto-me uma bordadeira, desde menina cresci tecendo histórias. Enfeitando aqui e ali. Somos todos passíveis de erros, mas se os cometemos, com certeza vamos aprendendo a tecer os pontos, a colorir aqui e ali.
Gostava de bonecas, havia muitas de tantos modelos e tamanhos. Não gostava de bebês, já havia em casa um cada dois ou três anos. Queria aquelas com roupas chiques, vestidas de mocinhas de época, caras, e só as vi nas prateleiras das lojas. Ganhei algumas mais baratas, então eu as vestia. Aconteceu de levar uma ou outra chinelada. Porque havia cortado aquele lençol, relíquia de tantos anos, ou ainda ter cortado uma blusa, ou saia, que não gostava de usar.
Engraçada é a vida, poderia ter sido costureira. Cresci querendo me vestir igual as minhas colegas de escola. Minha mãe até tentou comprar roupas de segunda mão e ajustar. Mas em nada se parecia com as das outras meninas. Resolvi eu mesma fazer alguma coisa.
Nessa época já trabalhava meio período em uma loja de uma mulher, amiga de minha mãe.
Essa senhora e a filha, uma moça que eu admirava por ser bonita e elegante, me deram algumas peças de roupa, pois as que eu usava não eram adequadas para atender os fregueses. Só aí é que pude notar a disparidade e a tristeza de ter menos que outras pessoas. A moça que eu admirava, por ser elegante e chique, se mostrou esnobe, em tudo me corrigia.
Apenas assentia. O pouco que ganhava, lavando o banheiro da loja, varrendo, passando pano e espanando, garantia, pelo menos, carne na panela. Meu pai operário, minha mãe diarista, pagavam as contas e nos davam o que precisávamos.
Eu nunca fui de desrespeitar meus pais, mas me sentia envergonhada após ter sido contratada como ajudante de vendas, e não passar dos azulejos encardidos e da privada fedida.
Estava insatisfeita, queria uma mudança. Minha mãe não estava em casa naquele dia, levaria meus irmãos para tomar vacina. Meu pai só chegaria à noite. Não fui à loja da grã-fina.
Resolvi dar uma volta na rua das lojas, entrei na loja Americanas, onde tinha um cartaz: “Precisa-se de moças”. Eu tinha 14 anos na época, fui e me candidatei. Fiz um teste escrito, e, enquanto aguardava o resultado, fiquei em um balcão com uma garota sorridente, que me explicou:
— Você, vai trabalhar comigo. Estranhei, havia preenchido uma ficha e feito o teste, ninguém me disse nada. Passei a tarde atendendo o público, no final do dia fui chamada ao RH. Estava contratada, traria no dia seguinte a carteira de menor de idade. O salário era bom; aos menos para mim parecia uma fortuna.
Só tinha um problema: eu trabalharia o dia todo das 8 às 17h, e, por ser estudante, sairia uma hora mais cedo, porque teria que estudar a noite. Fui correndo para o Colégio para fazer a transferência para o período noturno.
Não sei se era costume, mas ninguém se opôs, no dia seguinte entraria nas aulas às 19h30.
Na Lojas Americanas me deram um contrato, o horário especificado de trabalho, de segunda a sexta, aos sábados revezaria com minha colega, feliz. Cheguei em casa, e levei o maior susto, porque minha mãe já havia chegado, e estava de cara amarrada e vermelha, como ela ficava quando estava nervosa.
Não era coragem, era necessário, falei tudo de uma vez. Ela, com ar sério, não disse uma palavra. Virou-se para o fogão e foi preparar o jantar. No dia seguinte, acordei mais tarde, não era necessário entrar na escola às sete da manhã. Fui tomar banho, encontrei minha roupa, uma calça azul rancheira, sapatos de borracha, e uma blusinha de flores miúdas. Apesar da roupa, nunca fui menosprezada em meu trabalho. Esse, foi o jeito de minha mãe dizer que aprovava a mudança. Na loja usávamos uniforme, calça azul-marinho, camisa branca. Podíamos usar rabo de cavalo ou um coque. Aprendi com as meninas a usar batom.
Daí para frente, encontrei outras oportunidades de trabalho, e não parei mais. Olhando para trás, me orgulho de minhas decisões. Fui babá, garçonete, limpei banheiros, fui balconista por muitos anos, em várias lojas grandes, chegando a chefiar alguns departamentos. Fiz o colegial, e parei. Só voltei a estudar quando entrei para o serviço público. Onde permaneci por mais de vinte e oito anos.
Continuo até hoje bordando minhas histórias; às vezes a linha escapa, mas reato o fio até acabar o meu bordado.
Ivete Rosa de Souza
- Cabeça de alho - 24 de fevereiro de 2025
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Natural de Santo André (SP) e ex-policial militar, é uma devoradora de livros. Por ser leitora voraz, para ela, escrever é um ato natural, tendo desenvolvido o hábito da escrita desde menina, uma vez que a família a incentivava e os livros eram o seu presente preferido. Leu, praticamente, todos os autores clássicos brasileiros. Na escola, incentivada por professores, participou de vários concursos, sendo premiada – com todos os volumes de Enciclopédia Barsa – por poesias sobre a Independência do Brasil e a Apollo 11. E chegou, inclusive, a participar de peças escolares ajudando na construção de textos. Na fase adulta, seus primeiros trabalhos foram participações em antologias de contos, pela Editora Constelação. Posteriormente, começou a escrever na plataforma online Sweek a qual promovia concursos de mini contos com temas variados, sendo que em alguns deles ficou entre os dez melhores selecionados, o que a levou à publicação do primeiro livro, Coração Adormecido (poesias), pela Editora Alarde (SP). Em 2022, lançou Ainda dá Tempo, o segundo livro de poesias, pela mesma editora.