Nilza Murakawa: Conto ‘As bonecas’


às 09:03 PM
Vestidos pretos plissados, cobrindo joelhos ralados, em cabidezinhos ambulantes no pátio, davam um ar de elegância e disciplina à mansão que se erguia imponente na Rua Alfred, 666.
Nos jardins bem zelados, as árvores e flores se perfilavam como soldados em formação, podadas com precisão quase militar. Rente ao chão, a grama curta e sem falhas não acariciava pés. O portão, com a dureza do ferro, ainda que antigo, abria-se e fechava-se sem um som sequer. Um caminho de pedras de dolomitas brancas, nas laterais da calçada lisa, conduzia à porta principal de entrada.
No interior, o piso de cerâmica fria compunha figuras geométricas de apenas duas cores. Retratos de benfeitores hierárquicos, cujas expressões austeras eram suavizadas por quadros de paisagens intercalados, adornavam o alongado corredor térreo. A escada de madeira em caracol aberto, que alcançava o andar superior, também não emitia um único rangido, e seu corrimão entalhado não guardava digitais de pequenos dedos.
Três banheiros de cada lado, entre os dormitórios, não incentivavam vaidades. Frases em latim, gravadas também nas molduras dos espelhos, que mostravam apenas rostos, lembravam diariamente os valores e princípios que regiam o lugar: superbia vana est, ordo et disciplina, timor et reverentia, scientia et obedientia, patientia in silentio. As toalhas bege de felpa baixa, cuidadosamente dispostas nas prateleiras, eram rapidamente corrigidas a qualquer sinal de desordem. Dispensadores de sabonetes e shampoos, com gotas racionadas, não exalavam perfumes.
As camas enfileiradas, encostadas pelas cabeceiras ao longo das paredes cinzas, cheiravam a meia infância sob lençóis desamassados, colchas dobradas pela metade e travesseiros expostos sem contos de fadas. Nas janelas altas, com cortinas densas semiabertas, onde perninhas nas pontas dos pés não alcançavam, mal atravessava-lhes o sol maternal.
O ar era limpo, e madres vigilantes e madeira nobre muito polidas. As cadeiras, distanciadas a dois palmos bem medidos entre elas, preenchiam duas mesas compridas e nuas, mantendo a convivência ordenada. Em silêncio reverente, as refeições eram servidas pontualmente, respeitando as normas e exigindo mãozinhas limpas.
Raramente mencionada, uma porta trancada a sete chaves levava ao porão. Ali, nas profundezas da imponência da mansão, residiam os mais bem guardados segredos, certidões de nascimento e outros documentos tristes, e objetos proibidos de adoração e de luxúria, envoltos na proteção das sombras e da mudez conventual.
O tilintar das chaves na cintura, que anunciava com antecedência alguma presença rígida, o coral de vozes miúdas, que promovia autoestima e disciplina, o tradicional e elegante piano de cauda e o sino de cobre eram os únicos sons que quebravam o silêncio, sempre em horários religiosamente determinados.
Blem! Blem! Blem! Às 6 horas, amanheceu, era hora de acordar. Depois, o sino anunciava as quatro refeições, o início e fim das atividades diárias, os momentos de descanso e quando era hora de se recolher.
Pauline, de nove anos, jogada de um lugar para outro, com pais vivos, abastados e distantes, destacava-se entre as outras na mansão por seus grandes olhos azuis, cachos alourados angelicais, perspicácia e alegria constante, embora às vezes desconexa, que disfarçava para não ser aborrecida pelas superioras. Ainda assim, suas pequenas travessuras cotidianas e outras rebeldias eram sempre uma jornada solitária, pois ninguém ousava acompanhá-la por temor. Bolhas de shampoo e gritinhos felizes, desenhos esquisitos ou agourentos em espelhos e vidros embaçados, brotos de flores esmiuçados, pertences alheios escondidos, correspondências rasgadas, copos cuspidos, berros e batidas insistentes naquela porta proibida, chaves furtadas sem êxito ou entortadas rendiam-lhe constantes punições: privação de sobremesas e recreação, cem vezes uma frase em latim escrita em letras garrafais, acordar mais cedo para realizar tarefas extras, joelhos nas pedrinhas, olhos postos no canto da parede, quarto da vergonha e… porão! Vitória: finalmente adentrava o lugar sombrio que tanto a atraía.
Saboreando a atenção, a desordem e o jogo da perturbação e reações, ela fazia carinha inofensiva, dissimulava olhos melosos e inocentes, agarrava-se nas barras dos hábitos pretos, pois percebia que havia um despreparo para lidar com ela, e ganhava perdão.
Nas suas raras tardes livres primaveris, ela costumava arrancar petúnias vermelhas ou rosinhas espinhentas cor-de-rosa pendentes e levava-as escondidas até o dormitório. À noitinha, enquanto o sino murmurava um lamento arrastado e quase morto — blem… blem…—, e todas as luzes e atividades eram encerradas, Pauline emaranhava as flores nas “bonecas” pálidas que repousavam, ajeitando-lhes delicadamente as mechas de cabelo solto para não acordá-las. Algumas, no entanto, ela sempre cobria de branco da cabeça aos pés, como castigo na certa. Vez ou outra, tirava seu laço de fita permitido do cabelo e amarrava-o nos pescoços dessas pobres, uma a cada dia, apertando-o com força até que as “bonequinhas”, com espinhas arrepiadas, arregalassem os olhos tristes ainda quentes. Abafava-lhes o grito com as mãos, uma sobre a outra, a sangue frio e visceral, até que os corpinhos frágeis ficassem roxos, apagando definitivamente os sorrisos amarelos de desdém que tantas vezes a incomodaram, enquanto sussurrava: “Dorme, dorme, dorme, anjinho…”
Nos jornais locais, principalmente durante a primavera, pequenas notas semanais preenchiam a seção de óbitos infantis por causas naturais. E no Orfanato Springfield, na Rua Alfred, 666, à espera de novos brinquedos ambulantes, Pauline balançava escondida um bercinho ainda vazio no porão… DOMINUS SUI — DOMINUS SUI — DOMINUS SUI — DOMINUS SUI — DOMINUS SUI — DOMINUS SUI FORTITUDO SOLITARIA — FORTITUDO SOLITARIA — FORTITUDO SOLITARIA — FORTITUDO SOLITARIA — FORTITUDO SOLIT…
Nilza Murakawa
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Natural de São Paulo, Capital. Formada em Letras pela FMU, professora de Língua Portuguesa e Inglesa, artista plástica, escritora e poetisa. E-membro dos grupos Coesão Poética, Poemas à Flor da Pele e PoetArt, colunista do Jornal Gazeta de Aricanduva e da Revista Caras & Cores. É coautora das antologias Versos Di-versos — volume I, Editora Cidade e Poemas à Flor da Pele — volume 7 Editora Somar, e de eventos promovidos pela ALBAP (Academia Luso-Brasileira de Arte e Poesia). É autora do livro Pássaros na Garganta – Editora Somar e recebeu dois prêmios com os poemas Acinte e Ao teu gosto, no concurso em homenagem a Vinícius de Moraes. Suas pinturas, óleo sobre tela, estão espalhadas em vários estados brasileiros, no Canadá e nos Estados Unidos. Valendo-se de temas atuais variados e de elementos do cotidiano, a versátil escritora e artista expõe toda sua sensibilidade e nos empresta novos olhares através de suas obras.