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     Liberdade mente-me

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Ella Dominici: ‘Liberdade mente-me’

Ella Dominici
Ella Dominici
Imagem criada por IA do Bing – 31 de julho de 2025,
às 17:23 PM

Liberdade mente-me.

Essa frase contém o abismo e a ironia de quem, ao desejar ser livre, percebe que a promessa da liberdade pode ser uma ilusão sedutora, uma quimera que queima as asas de quem voa em sua direção.    

      A liberdade, nesse paradoxo, torna-se uma entidade que mente ao nos prometer plenitude — e quando finalmente se apresenta, somos nós que não mais sabemos habitá-la.

     O céu não desce, nem sobe. Apenas paira — imóvel como um olhar que sabe demais. A manhã acorda com os ombros tensos, e ninguém ousa nomear o absurdo.  

     O silêncio mastiga a dúvida, e o homem, ao tentar mover-se, tropeça na própria lucidez. Tudo nele é consciência, e essa consciência pesa mais que a morte. Ele vive, sim. Mas cada passo é um protesto contra o chão.

     Ela caminhava como se arrastasse uma infância às costas. Os lençóis ainda tinham o cheiro das promessas não cumpridas. Ao lado, a pele do outro — morna, disponível — era uma ilha que ela não sabia habitar.

      A liberdade entrou pela janela e ficou parada no meio do quarto. Era tarde demais. Ela já havia aprendido a respirar sem ela.

     O sol invadia o quarto sem pedir licença. Ela não fechava as cortinas. Queria que a dor aprendesse a conviver com a luz. Mas a luz era cega e mostrava tudo: as rachaduras, os restos, as bonecas viradas para a parede. Ser livre era uma tarefa que exigia forças que ela havia doado a poemas. E os poemas? Amavam-na, mas não a salvavam.

     Ela tocava nas palavras como quem toca numa pedra quente: não para colher, mas para reconhecer o calor. Tudo em volta pulsava sem sentido, como se o mundo tivesse desaprendido a nascer. Ela queria mais que voar — queria dissolver-se no ar. Mas ao tentar, percebeu que o ar também sangra. E então, nomeou o indizível com o silêncio.

     As cartas, os cadernos, a máquina de escrever — hoje teclado — tudo a olhava como se exigisse confissão. Ela mentia com precisão.

     A liberdade era o disfarce da desistência. E ela, embora tão jovem, já sabia dançar com as perdas. Sabia que o tempo não cura: apenas reorganiza os escombros para parecer paisagem.

     Na escada, ninguém espera. A porta não se abre nem se fecha, apenas observa. Cada degrau range uma acusação sem língua. O homem carrega um nome que não lhe pertence.

     E a liberdade? É uma senha esquecida. Um papel dobrado no bolso que nunca se ousou virar. Ele anda, não por vontade, mas porque parar é admitir que foi engolido.

     A mente é um palco onde as cortinas nunca fecham. Sonhos desfilam nus, e medos gritam entre os bastidores. Ele fala consigo mesmo, mas escuta o mundo inteiro.

     A liberdade mora num crânio vazio, ecoando ideias que nunca se realizam. Há mais dor em pensar do que em sofrer. E mais prisão na dúvida do que na cela.

     Liberdade mente-me — com sua voz de vento e vestes de luz. Mas a luz também fere, e o vento não escolhe rota. Talvez sejamos apenas corpos tentando lembrar como se vive, depois da promessa não cumprida.

     Talvez liberdade seja esse espelho onde a alma não se reconhece mais.


Ella Dominici

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Rute Ella Dominici
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2 thoughts on “     Liberdade mente-me

  1. Ella, não me lembro se já usei esta imagem, mas, se a usei, a reitero: este texto é um Tapete Persa Literário! E que não se compra com todo o ouro do mundo, mas se o vê com os olhos da profundidade da alma.

    Separar trechos que exalam admiração é quase uma heresia. Porém, a cometo, esperando – com estes dias invernais – ter o lugar mais quente do Inferno:

    “O silêncio mastiga a dúvida, e o homem, ao tentar mover-se, tropeça na própria lucidez.”

    “Ela queria mais que voar — queria dissolver-se no ar. Mas ao tentar, percebeu que o ar também sangra. E então, nomeou o indizível com o silêncio.”

    “As cartas, os cadernos, a máquina de escrever — hoje teclado — tudo a olhava como se exigisse confissão. Ela mentia com precisão.”

    “Na escada, ninguém espera. A porta não se abre nem se fecha, apenas observa. Cada degrau range uma acusação sem língua.”

    “E a liberdade? É uma senha esquecida.”

    “A mente é um palco onde as cortinas nunca fecham. Sonhos desfilam nus, e medos gritam entre os bastidores.”

  2. Sérgio, é na maturidade que a sabedoria nos mostra metáforas do que é a existência. Ainda assim resistimos e na escrita o indizível se faz voz.
    Gratíssima por sua leitura tão delicada e profunda!
    Abraço

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