Paulo Siuves: Crônica ‘Um grito no abismo’


A segunda quinzena de outubro chega ao fim, trazendo consigo a dualidade agridoce de um calendário. Mal se aquietam os festejos do Dia das Crianças, com sua aura de inocência e promessas de futuro, e já se aproxima o dia 15, um lembrete para aqueles que deveriam ser os pilares desse futuro.
A semana de folga escolar, uma consequência direta da celebração infantil, projeta uma sombra irônica sobre o ofício do professor. A pausa, mais do que descanso, parece uma cortina que esconde a realidade. Longe do portão fechado, da lousa apagada e do silêncio da sala de aula, o professor, em vez de celebrar, apenas ‘relembra’ seu dia.
Afinal, que motivos há para tanta festa? Sim, existem vitórias na caminhada, a semente que germina, a curiosidade que floresce em um aluno. Mas, em contraste, há o descaso crônico, a violência que se alastra, a falta de políticas públicas efetivas e o investimento minguante. Não, não podemos dizer “vamos celebrar o dia do professor” sem que a frase ecoe como uma farsa.
Nas redes sociais, pipocam mensagens de “Feliz Dia dos Professores!” com fotos de quadros negros, maçãs e frases inspiradoras. Uma hipocrisia sutil, um abraço de papel que pouco resolve. Os mesmos que celebram o ‘dom de ensinar’ são, muitas vezes, os que silenciam diante dos salários defasados, das escolas sucateadas e da violência que se alastra nas salas de aula.
Curiosamente, o Dia do Professor no Brasil, instituído em 1827 pelo Imperador Dom Pedro I, nasceu do mesmo decreto que organizou o ensino elementar e descentralizou o pagamento dos docentes. Desde então, a luta por reconhecimento, valorização e condições dignas é uma constante, uma batalha incansável contra a ingratidão e o descaso. A crônica social, ao longo de décadas, tem sido o palco para a denúncia de uma realidade que contrasta com a romantização da profissão.
O calendário avança e o professor, em vez de comemorar, segue em sua batalha silenciosa. Em poucos dias, a sociedade repetirá a cortesia para outro ofício essencial — o médico, celebrado em 18 de outubro. Também ele será alvo de frases feitas, imagens de jalecos e estetoscópios, enquanto hospitais enfrentam superlotação, falta de insumos e jornadas exaustivas. A hipocrisia é a mesma: homenageia-se o profissional, esquece-se o sistema — e o problema permanece intocado.
A celebração vazia, por mais bem-intencionada que seja, apenas ressalta o abismo entre o ideal e a realidade. A rosa do conhecimento, que o professor se esforça para cultivar, murcha no canteiro da negligência.
A crônica de hoje não é de comemoração, é de reflexão — um grito no abismo, pedindo que a sociedade vá além das felicitações vazias e reconheça o real valor daqueles que moldam o futuro. Afinal, a educação não se faz de frases bonitas, mas de respeito, investimento e dignidade. Feliz dia, professor. Ou, quem sabe, “vamos à luta, professor”?
Paulo Siuves
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Natural de Contagem/MG, é escritor, poeta, músico e guarda municipal, atuando na Banda de Música da Guarda Civil Municipal de Belo Horizonte como Flautista. É graduado em Estudos Literários pela Faculdade de Letras (FALE) da UFMG. Publicou os livros ‘O Oráculo de Greg Hobsbawn’ (2011), pela editora CBJE, e ‘Soneto e Canções’ (2020), pela Ramos Editora. Além desses, publicou contos e poemas em mais de cinquenta antologias no Brasil e no exterior.


A sua crônica, Paulo, é absolutamente pertinente. Há, sim, de se gritar a plenos pulmões sobre o que viraram os professores hoje em dia, em especial as professoras do Esnino Fundamental.
Muito obrigado por seu constante apoio e leitura, meu nobre amigo e editor!
Paulo Siuves, parabéns pela crônica. Ela revela a verdade, que nós, professores da educação básica sentimos na pele, cotidianamente. Romantizaram a profissão, utilizando a narrativa, de que “ser professor é um dom!” Não é. É uma profissão como qualquer uma outra, é como tal, exige responsabilidade, dedicação. Mas também é preciso investir na valorização dos profissionais, em melhores condições de trabalho e salarial, bem como, em todo o processo, que possa garantir uma educação pública de qualidade.
Evani, agradeço profundamente por suas palavras e pela leitura generosa da crônica. Embora eu não seja professor, muitos e muitos passaram pela minha vida e deixaram marcas profundas. Foram eles que me moldaram, me provocaram a pensar, me ensinaram a ver o mundo com outros olhos. Essa crônica é, em parte, um tributo a todos esses mestres que, com coragem e dedicação, enfrentam diariamente os desafios de uma profissão que deveria ser valorizada em sua plenitude.
Você tem razão: ser professor não é um dom, é uma escolha profissional que exige preparo, respeito e investimento. Que esse grito, seu, meu, nosso… continue ecoando até que seja ouvido com a seriedade que merece.
Seguimos juntos na defesa da educação.
Verdades… Lamentável como a profissão de professor foi degradada ao longo dos anos!